Entrevista sobre Moraes Moreira, por José Geraldo Vinci de Moraes

Recentemente a imprensa repercutiu o impacto do falecimento do compositor Moraes Moreira, revelando a grandeza do músico baiano. Para comentar e refletir o acontecimento o jornalista Gustavo Xavier, do Jornal da USP, entrevistou o professor do DH-FFLCH José Geraldo Vinci de Moraes, membro do Comitê Editorial da RH.

Qual papel os Novos Baianos desempenharam na história da música brasileira? E como você localiza a contribuição do Moraes Moreira nos Novos Baianos?
O papel ocupado pelos Novos Baianos na cultura musical brasileira foi e continua sendo muito grande. Poucos conjuntos musicais de formação duradoura e estável como ele foi alcançaram tamanha influência durante o período de sua existência nos anos 1970, e que permaneceu ativa de maneira evidente ou oculta — uma vez que artistas e conjuntos não têm a consciência clara dela — até os dias de hoje. O grupo formulou uma linguagem musical renovada e muito própria — associando e estabelecendo relações entre o Rock, o Samba, a bossa Nova, o Choro, o Frevo e assim por diante — que influenciou inúmeros compositores, bandas e movimentos musicais. E no epicentro deste processo e do conjunto estava justamente Moraes Moreira. Claro que a banda tinha um sentido coletivo que praticava musicalmente, mas também no modo de vida muito próprio da juventude daquela época: tanto é que foram morar todos juntos em um sítio em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. No entanto, o compositor mais produtivo e destacado sempre foi Moraes. Para se ter uma dimensão de sua importância, no disco mais marcante da banda, Acabou Chorare (1972), fora Brasil Pandeiro, de Assis Valente, todas as outras composições têm a participação direta de Moraes Moreira. Além disso, ele e Pepeu Gomes foram os responsáveis por todos os arranjos. Esse exemplo certamente revela o tamanho de sua influência no conjunto. Além disso, quando ele iniciou a carreira solo, a banda se desestabilizou e encerrou sua trajetória, no final dos anos 1970. Mesmo assim, Moraes Moreira e Novos Baianos não podem de modo algum ser dissociados.

Você enxerga uma rota na história musical de Moraes Moreira? Sua maneira de tocar e de compor se modificou ao longo de sua trajetória nos Novos Baianos? E depois dos Novos Baianos, como você situaria a trajetória musical dele?
Claro: como em toda trajetória artística, é possível ver em retrospectiva uma certa rota, mas com caminhos e trilhas que muitas vezes se aproximam ou se distanciam. Certamente esses trajetos nunca são pré-determinados, sobretudo na carreira dos artistas populares que constroem itinerários menos institucionais: eles vão sendo criados de maneira inventiva no cotidiano. Dos temas e práticas da juventude dos anos 70, do encontro com João Gilberto e a Bossa Nova, do reencontro com carnaval de Trio Elétricos até a docilidade da maturidade, se percebe essa diversidade criativa. Mas ao mesmo tempo ela estabelece os traços, digamos, “moreirianos” de compor, cantar e tocar, que o identificam e o singularizam. Ocorre que esses itinerários não são ascendentes e permanentemente criativos, como geralmente nos fazem crer as biografias laudatórias. O artista invariavelmente é um sujeito muito sensível, em que as delicadezas e a criatividade convivem com as angústias e muitas dúvidas. Neste frágil equilíbrio pessoal e profissional, o artista passa por aquilo que os críticos identificam genericamente como “fases” (“boas”, “ruins”, “desaparecidos” etc.). Moraes Moreira teve as suas, mas sempre as enfrentou com muita estabilidade e inventividade.

Há uma identidade perceptível no curso da obra de Moraes Moreira?
Como salientei anteriormente, claro que há uma identidade “moreiriana”, que muitas vezes se confunde com a dos Novos Baianos e nos anos 1980 com o Trio Elétrico. Mas ele transportou para esses lugares sua voz anasalada, o toque de seu violão muito singular, o ritmo incessante associado a uma delicadeza sonora evidente e permanente. E, no meio desse turbilhão afetuoso, brota a inquietude com as fusões, experiências e inventividade. Ao identificarmos traços e práticas tão marcantes, como os “moreirianos”, se percebe a grandeza da obra e influência do artista.

O que se poderia destacar das contribuições de Moraes Moreira em relação ao carnaval e, especialmente, à história dos trios elétricos?
Creio que foi enorme. Ele deu vida nova ao carnaval de Salvador ao se associar ao Trio de Dodô e Osmar, trazendo exatamente novas fusões, inventividade e delicadeza. Depois de sua participação, o carnaval baiano ganhou nova expressão. Com o tempo, as novas dimensões, que estabeleceram novas práticas e outros interesses no carnaval, deixaram Moraes muito descontente, levando-o a se afastar.

É possível identificar matrizes e referências (de gêneros, de artistas específicos, de “escolas musicais”) mais significativas/predominantes na obra de Moraes Moreira? Como ele as combinava?
Esse talvez seja um dos traços mais marcantes de sua obra: ele não seguia uma, digamos, “escola” ou “tradição”. Certamente há o Moraes roqueiro, como são evidentes os sinais do violão e a voz bossanovistas; a influência do samba, do choro e do frevo são cristalinos e perfeitamente audíveis em sua obra; assim como seu interesse pela música de carnaval e outros gêneros da cultura musical oral são tangíveis. Acontece que em nenhum desses casos é possível qualificá-lo rigorosamente como “sambista”, “chorão”, “roqueiro” etc. Sua prática era das fusões, combinações e inventividade.

Um procedimento musical muito comum na história da música brasileira foi o recurso aos elementos da tradição oral/folclore. Isso também está presente no Moraes Moreira? Como
Creio que parte da resposta já foi indicada na pergunta logo anterior. Ele usava claramente esses elementos que faziam parte de sua formação e interesses. Mas os manuseava de maneira inteligente e criativa, combinando-os de diversos modos. Aliás, é preciso que se diga que isso não é uma novidade, já que se trata de uma prática cultural que faz parte da dinâmica da música popular no Brasil. A novidade está na forma totalmente peculiar e original em que Moraes Moreira faz uso e combinações, e que fazem dele um artista maior.

 

Braudel e a longa duração – mensagem de Miguel Palmeira aos estudantes de Metodologia

Caras e caros, [1]

volto a uma discussão que tivemos em nossa segunda aula (e a única de conteúdo) para comentar um artigo clássico de Fernand Braudel (1902-1985), “História e ciências sociais: a longa duração”, originalmente publicado na revista Annales: Économies, Sociétés, Civilisations em 1958 e editado em português em 1965, com tradução de Ana Maria Camargo para a Revista de História (ver http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/123422).

Ao discutirmos em sala um dos capítulos de Doze lições sobre a história, vimos que Antoine Prost defende a tese de que, no seio das ciências humanas, a História se distingue por sua preocupação com a dimensão diacrônica dos fenômenos sociais. Ou seja, é como se historiadores e historiadoras, entre seus pares da Antropologia, da Sociologia, da Geografia etc., fossem os mais insistentes em lembrar que a vida em sociedade só se explica por referência ao tempo ou aos tempos em que ela tem lugar.

Conforme foi dito em sala de aula, a tese nada tem de original. Certa ou errada, ela é constitutiva da História como profissão. Na historiografia francesa, essa ideia foi afirmada, por exemplo, como ponto de partida da reflexão desenvolvida por Marc Bloch em Apologia da História (livro póstumo publicado em 1949). Fernand Braudel, que nos anos 1950 dirigia a revista que Marc Bloch fundara com Lucien Febvre em 1929 (os Annales), ocupou-se da relação dos historiadores com o tempo em vários trabalhos. De modo mais sistemático, porém, Braudel debruçou-se sobre a questão justamente no artigo de 1958, objeto do meu comentário desta semana.

Em 1958, Braudel tinha um prestígio intelectual consolidado na disciplina histórica e um poder institucional bastante considerável no campo intelectual francês. O que ele dizia, portanto, tinha um peso relevante nas discussões historiográficas da época. Havia ainda um contexto intelectual específico que tornava aquela sua intervenção relevante. À época, havia se acirrado na França uma disputa pela definição da disciplina hegemônica nas ciências humanas. Os historiadores, embora detentores de um saber muito valorizado no sistema de ensino e na sociedade francesa, vinham sendo questionados como se fossem os representantes de um pensamento retrógrado no estudo das sociedades humanas. Esse pensamento retrógrado se caracterizaria por uma valorização do “sujeito” na história, como se no primeiro plano de interesse dos historiadores estivesse sempre aquilo que os os indivíduos fazem de maneira pensada, consciente. Contra tal perspectiva levantavam-se diferentes variedades de estruturalismo. Tendo como encarnação mais emblemática a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, o estruturalismo voltava seu olhar não para as expressões conscientes da vida social, mas sim para suas estruturas inconscientes. Com seu artigo sobre a “longa duração”, Braudel entrava nessa discussão de maneira engenhosa, contrapondo-se tanto aos historiadores “retrógrados” quanto aos críticos que eles haviam incitado nas disciplinas vizinhas.

A perspectiva estruturalista por vezes derivava para uma redução do papel dos historiadores ao de coletores de fatos, isto é, de fornecedores de materiais que alimentariam as teorias de profissionais (antropólogos, linguistas, filósofos etc.) supostamente mais gabaritados – ainda que um pensador sofisticado como Lévi-Strauss jamais tenha dito algo dessa ordem explicitamente. Contra isso, Braudel apresentava de maneira muito particular a ideia de que a História, ou melhor, a História tal como ele e os historiadores dos Annales entendiam, era uma ciência social de pleno direito. Os cientistas sociais, dizia ele, de modo geral conhecem mal o trabalho dos historiadores. Estes não mais rezariam pela cartilha das filosofias do sujeito, às quais o estruturalismo os associara. A História era, para o autor, a ciência incumbida de explicar um aspecto crucial da existência humana: “essa duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são somente a substância do passado, mas também a matéria da vida social atual”. Residiria aí a importância da disciplina: sua capacidade de desvendar a “dialética da duração”, isto é, a oposição entre o instante fugaz e o tempo longo e lento. Seja para o passado ou para o presente, “uma consciência clara dessa pluralidade do tempo social é indispensável para uma metodologia comum das ciências do homem” (Braudel, 1958, p. 726). Como a ciência das durações inscritas nas estruturas sociais, a História não só não se reduzia a fornecedora de fatos para as teorias alheias, como empregava um modo próprio e percuciente de apreender o social; ela era “a explicação do social em toda sua realidade” (Braudel 1958, p. 738), o que a habilitava a ter certa ascendência sobre outras ciências sociais.

A categoria-chave do texto de Braudel é a de duração. O tempo não escoa de maneira uniforme ao longo da história: ele alterna seus ritmos. Como ciência dos homens no tempo que é, a História deve se dotar dos instrumentos adequados para distinguir esses diferentes ritmos que regulam a vida social. A duração é, portanto, simultaneamente um dado de realidade (os processos podem de fato ser mais lentos ou mais rápidos) e uma ferramenta heurística (nosso olhar deve ser devidamente modulado para explicar a duração específica dos processos de que nos ocupamos).

Braudel avança lembrando que o trabalho do historiador sempre supõe um recorte do tempo. Tal operação o autor recomenda que façamos observando três formas distintas de espessura temporal. A primeira é o “tempo curto”, caro à história tradicional, que faz sobressaírem os indivíduos, o cotidiano, os acontecimentos medíocres e as tomadas rápidas de consciência. Em seguida, Braudel nos fala de um “tempo médio”, ao qual é afeita a história econômico-social. Aqui, os ciclos de dezenas de anos assumem um valor explicativo. Esse recorte do tempo permite distinguir os movimentos da economia (como a subida ou a queda dos preços, por exemplo). Finalmente, o “tempo longo”: a história de longa ou muito longa duração. Esse é o tempo das estruturas, das relações estáveis que se observam na vida social. A história estrutural seria uma história daquilo que tem uma permanência secular – daquilo, portanto, que custa a se modificar. Um bom exemplo dela, aponta o autor, seria seu próprio livro sobre o Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II: a noção de capitalismo mercantil desenvolvida nesse trabalho era o produto de uma mirada de longa duração no domínio econômico, pois identificava os elementos que davam liga à economia da Europa entre os séculos XVI e o XVIII.

Há muito mais do que isso no texto, e por isso eu lhes recomendo que o leiam. Menciono apenas mais um traço seu, que se comunica diretamente com o chamado de Antoine Prost a que historiadores hierarquizem temporalidades desiguais. Vocês encontrarão no artigo declarações conciliatórias de Braudel sobre não se privilegiar uma forma de história sobre a outra. De fato, porém, ele estabelece uma hierarquia causal entre seus tempos. Com a história lenta, ele nos dirá, “a totalidade da história pode se pensar a partir de uma infraestrutura”; “todos os andares (…), todas as milhares de fragmentações do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela. ” (Braudel, 1958, p. 734). Noutras palavras, a estrutura comanda o evento, mas o contrário jamais se verifica. Se isso não anula por completo o interesse dos eventos, estabelece-os como epifenômenos, como consequência de um processo essencial, estruturado, lento. Há uma escala de valores distintos dos tempos, de seus poderes causais e, por conseguinte, dos pesquisadores que se ocupam de um tempo forte e de um tempo fraco (vale dizer, essa é uma formulação que Braudel atenuaria bastante em textos posteriores).

Eis por que Prost termina o capítulo que discutimos evocando Braudel. Suas páginas finais são dedicadas a demonstrar como os historiadores trabalham com o tempo: eles constroem períodos, o que, no estudo histórico, equivale a construir unidades de sentido específicas. Essa é uma operação incontornável, dirá o autor, mas também plena de problemas. E foi Braudel, sugere Prost, quem melhor se houve com tais desafios.

 

Referências bibliográficas

BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales : la longue durée. Annales E.S.C., vol. 13, n. 4, outubro-dezembro 1958, pp. 725 – 753.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Ana Maria Camargo. Revista de História, vol. 30, n. 62, abril-junho de 1965, pp. 261-194.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Rui Nazaré. In: BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990, pp. 7-39.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Flávia Nascimento. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério Forastieri da (orgs.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 86-121.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, cap. 5 (“Os tempos da história”).

 

[1] Comentário enviado a alunas e alunos de Metodologia I durante o período de isolamento social do primeiro semestre de 2020.

“O” Vírus – texto de Stella Franco

“O” Vírus

Stella Franco
Professora do Departamento de História da USP

Você já deve ter tido, nesses últimos dias, a sensação bizarra de viver um cárcere privado enquanto um vírus pernicioso e travesso é flagrado tomando a sua cerveja gelada no bar da esquina. Saiba que ele não está sozinho. Segundo me garantiu um amigo espírita, está acompanhado de “espíritos zombeteiros” que, nesse exato momento, povoam as ruas quase desertas das cidades. Juntos, caçoam de nós, reles mortais, presos em nossas casas.

Se toda brincadeira tem uma dose de verdade, a blague acima serve para mostrar a forte tendência atual à individualização d´O Vírus. Da mesma maneira, podemos perceber uma certa inclinação geral à personificação da natureza. Muitos posts – remetidos por pessoas das mais diversas inclinações político-ideológicas ou até mesmo religiosas – carregam a mensagem de que Ela estaria se incumbindo de frear o curso da humanidade nessa fase em que se encontra dominada pela explosão demográfica, pela correria da vida urbana, pelo uso desenfreado da tecnologia ou, em suma, pelo que chamaremos aqui de “excesso de civilização”.

Ideias parecidas foram produzidas no século XIX, no compasso da Revolução Industrial, cuja história já conhecemos bem: os campos foram cercados; parte significativa da população mudou-se para as cidades; as máquinas começaram a funcionar, literalmente falando, a todo vapor; a poluição – do ar e sonora – começou a incomodar o cotidiano das pessoas; enfim, a pobreza urbana tornou-se um problema social. Justamente nesse contexto, produções e ações que convencionamos nomear de “românticas”, foram geradas, opondo-se ao já citado “excesso de civilização”. Será que, ao entendermos o papel desta nova “peste” como um possível limitador à nossa sanha evolutiva, estaríamos reproduzindo novamente atitudes românticas? Nunca é demais olharmos para o passado para refletirmos sobre o nosso presente. Voltemos os nossos olhos para o período de transição entre os séculos XVIII e XIX.

Nesse contexto, a civilização, como a conhecemos, passou a ser desejada por muitos. O próprio termo “civilização” chegou a ganhar um novo sentido. De acordo com Jean Starobinski, em As máscaras da civilização, a palavra, que até o século XVIII preservara seu significado jurídico de “tornar civil uma causa criminal”, começou a ser lida como sinônimo de progresso, associada ao moderno. Foi entendida como um “processo fundamental da história” que envolvia toda a humanidade, correspondendo a um valor a ser alcançado e que devia ser almejado por todos. Foi tratada como fenômeno antinômico à natureza. Esta supostamente viria primeiro, sendo pensada como estágio associado à selvageria e à barbárie. No entanto, passado o primeiro estágio de euforia, alguns indivíduos sensíveis começaram a fazer o caminho de volta e passaram, utopicamente, a desejar a vida em harmonia com a natureza. Raymond Williams mostra, em O campo e a cidade: na história e na literatura, que, na Inglaterra, na construção de grandes parques florestais (nos quais era possível a um indivíduo até se perder), buscava-se a imitação da natureza selvagem: bravia, tortuosa, sublime. Trata-se de uma evocação nostálgica de um passado perdido, construído justamente em momento histórico em que o uso da tecnologia interferia de maneira intensa no curso da natureza. Em outro nível, mas não menos importante, lembremo-nos do naturalista norte-americano Henry David Thoureau que publicou, em 1854, Walden, ou A vida nos bosques, no qual realiza reflexões críticas à civilização industrial. Produziu a obra quando se encontrava em sua casinha construída à beira do lago que dá título ao livro, situada em propriedade de Ralph Waldo Emerson, outro apologista da natureza. Os exemplos podem se multiplicar, mas, o que interessa aqui é destacar que autores de posições bastante diversas utilizaram esse mergulho na natureza para reagirem a tudo aquilo que pudesse depreciá-la. Por uma chave de interpretação sedutora, mas arriscada, Michael Löwy e Robert Sayre afirmaram, em Romantismo e política, que esse espírito de rebeldia contra a civilização – que envolvia também uma certa dose de rancor em relação ao capitalismo – era o que unificava românticos de diferentes matizes, de socialistas a liberais.

Nos textos desses românticos não faltam projeções da natureza como um ente, ou às vezes como uma força cósmica, capaz de responder às provocações humanas. A descoberta, em meados do século XVIII, das ruínas das cidades antigas devastadas pelas lavas do Vesúvio em 76 d.C., despertou a imaginação utópica de muitos viajantes românticos que passaram a visitar o local a partir de então. Os exemplos disso não são tão remotos. Nísia Floresta, autora brasileira do século XIX – relativamente conhecida entre nós graças à celebração de sua figura por grupos feministas da atualidade -, escreveu as seguintes palavras após visitar as cidades devastadas pelo vulcão: sua cratera “é um abismo sempre pronto a engolir, de um momento para o outro, as modernas belezas criadas a seus pés pela mão do homem”. No livro intitulado Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia, no qual se encontram essas reflexões, ainda mencionou as ruínas de Herculano, outra das cidades vitimadas pelo Vesúvio, afirmando: “Certas naturezas são como terrenos férteis: quanto mais os sulcos do arado passam sobre eles, tanto mais abundantemente produzem. Do mesmo modo, quanto mais essas naturezas são sacudidas pela mão da desgraça, tanto mais desdobram energia para resistir aos abalos molestos”. Ela estava entre os que destacavam as desarmonias entre natureza e civilização. Em sua leitura – romântica – a natureza, como que dotada de vontade própria, podia “responder” veementemente às intervenções humanas.

Muitos textos sobre a pandemia, que circulam hoje, de pessoas de diferentes grupos e formas de pensar, voltam a nos remeter à noção do “excesso de civilização”. O contexto é outro, claro, e não devemos nos deixar seduzir pelos anacronismos. Mesmo assim, é interessante observar como somos amplamente levados a pensar nesta hecatombe do presente como um ato voluntarista da própria natureza (ou de Deus, para alguns), para corrigir o curso das ações humanas.

Ao atribuirmos à natureza uma personalidade, acabamos também pensando no vírus como um ente – um ente que, entre outras coisas, se apropria da nossa vida social e bebe a nossa cerveja gelada no bar da esquina.

 

Referências bibliográficas

FLORESTA, Nísia. Trois ans en Italie suivis d’un voyage en Grèce. Paris: E. Dentu, 1864. (edição traduzida: FLORESTA, Nísia. Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia. Natal: EDUFRN, 1998).

LÖWY, Michael e SAYRE, Robert. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.