História e cultura indígena

O Centro de Estudos Mesomericanos e Andinos da USP (CEMA-USP) inaugurou nova seção na sua página eletrônica, que contém a produção científica de seus coordenadores, pesquisadores e colaboradores.
A seção conta, atualmente, com mais de 280 produções: artigos, dissertações, teses, livros, capítulos de livros e entrevistas,  que foram produzidos nas últimas décadas e tratam da história e cultura dos povos indígenas.
É um amplo material para pesquisadores e representa excelente apoio didático para professores.

 

Leitura de “A morte e a bússola” – mensagem de Júlio Pimentel Pinto aos estudantes de História da Cultura

Uma leitura de “A morte e a bússola”, de Jorge Luis Borges[1]

 

Júlio Pimentel Pinto

 

A marca mais notável do gênero policial na obra individual de Borges — e por ele mesmo admitida — é “A morte e a bússola”.[2] Lá estão os elementos básicos de um conto policial: o detetive imaginativo e seu assistente realista, a trama intrincada que envolve os crimes, o clima de mistério e expectativa, a lógica rigorosa da investigação em contraste com as trivialidades do quotidiano, os jogos de signos, a vitória da razão.

A abertura do texto instiga o leitor ao mencionar a “perspicácia” de Lönnrot e a “estranheza” dos episódios:

“Dos muitos problemas que exercitaram a temerária perspicácia de Lönnrot, nenhum tão estranho — tão rigorosamente estranho, diremos — como a periódica série de fatos de sangue que culminaram na chácara de Triste-le-Roy, em meio ao interminável odor de eucaliptos. É bem verdade que Eric Lönnrot não conseguiu impedir o último crime, mas é indiscutível que o previu. Tampouco adivinhou a identidade do infausto assassino de Yarmolinsky, mas, sim, a secreta morfologia da malvada série e a participação de Red Scharlach, cujo segundo apelido é Scharlach, o Dândi. Esse criminoso (como tantos outros) tinha jurado pela sua honra a morte de Lönnrot; este, porém, nunca se deixou intimidar. Lönnrot se julgava um puro raciocinador, um Auguste Dupin, mas havia nele algo de aventureiro e até de jogador.”[3]

O parágrafo oscila intencionalmente entre o tradicionalismo de uma abertura clássica de conto policial — com a instauração do suspense, que contrasta com a serenidade da ambientação — e a inovadora revelação imediata de parte do mistério, que inclui a identificação do criminoso e o reconhecimento de que o detetive não obteve sucesso completo. O narrador antecipa o desfecho com um corte abrupto após o primeiro ponto e transgride a expectativa do leitor, desviando a atenção deste para outros aspectos da trama. Dois dos aspectos centrais também são apresentados de saída, sob a forma talvez discreta de um adjetivo e um advérbio. Através deles, o leitor fica sabendo que a perspicácia de Lönnrot é “temerária” e o problema é “rigorosamente” estranho. Não se trata, portanto, da habitual (e esperada) perspicácia de todo detetive de ficção, nem da estranheza regular de uma intriga que envolve crimes de sangue. A perspicácia de Lönnrot inclui riscos, sugere ações incertas; a estranheza do caso comporta um “rigor” que — só depois saberemos — resulta do exagero lógico da análise de Lönnrot, que desemboca em soluções artificiais, distanciando-se (ao invés de se aproximar) da revelação.

A habitual caracterização inicial do detetive vem acompanhada, e em parte antecedida, da apresentação do criminoso. Esta assume ares convencionais (seus apelidos sugerem um passado, um estilo e a ocasional necessidade de ocultar o verdadeiro nome) e, ao mesmo tempo, contrastantes: o criminoso é um dândi. Já Lönnrot cresce aos poucos no parágrafo; é primeiramente um sobrenome, para depois ganhar prenome e, finalmente, atitude. Também em seu caso, sugere-se um desajuste: ele se toma por Dupin (o que permite ampliar a importância de sua perspicácia e da eficácia de sua razão analítica), mas age de forma perigosa, isto é, descontrolada, “temerária”, supostamente alheia à razão. Os dois personagens aparecem juntos e unidos pelo passado, cujos detalhes só conhecemos no final, embora saibamos que se prolongam até o tempo da narração: Scharlach pretende vingar-se. A brutalidade da vingança jurada tem, igualmente, seu antônimo no parágrafo: o breve comentário, entre parênteses, de que o malfeitor não foi o único a ameaçar Lönnrot, e este não se intimidava.

O espelhamento entre detetive e criminoso não é incomum no gênero policial; ao contrário, são numerosos os exemplos de simetria entre os dois principais personagens da trama, que agem como duelistas. O tema aparecera inclusive em Poe e ganhara seu maior desenvolvimento em “A carta roubada”. No conto de Borges, porém, ela é levada às últimas conseqüências. John Irwin observa que as semelhanças já estão nos nomes bastante próximos:

“Lönnrot e Scharlach são, é claro, duplos um do outro, como indicam seus nomes. Numa nota ao conto, Borges diz: ‘A sílaba final de Lönnrot significa vermelho em alemão, e Red Scharlach também é traduzível, em alemão, como Vermelho Escarlate.’ Em algum outro lugar, Borges nos conta que Lönnrot é sueco, mas evita informar que, em sueco, a palavra lönn é um prefixo que significa ‘secreto’, ‘escondido’ ou ‘ilícito’. Portanto, Lönnrot, o vermelho secreto ou escondido, persegue e é perseguido por seu duplo Red Scharlach (Vermelho Escarlate), o duplo vermelho.”[4]

Daniel Balderston reconhece a equivalência entre Lönnrot e Scharlach, mas discorda da associação dos nomes dos personagens centrais do conto, para os quais oferece outras origens e outros significados:

“Um dos lugares comuns da crítica de ‘A morte e a bússola’, que consiste em cerca de quarenta artigos e numerosos capítulos de livros, é que o peculiar desdobramento de Lönnrot, o detetive, em Scharlach, o criminoso, se reflete em seus nomes: tanto ‘rot’ quanto ‘scharlach’ significam ‘vermelho’ em alemão. Alguns críticos (entre eles, o inefável John Sturrock) expandiram este jogo e observaram que ‘red’, o nome da cor em inglês, significa ‘labirinto’ em espanhol. Este tipo de jogo interlingüístico é atraente para a interpretação do relato exatamente pelas múltiplas maneiras com que este joga com a compreensão e os mal-entendidos culturais. Não serve, porém, para realizar um exame adequado do jogo. O próprio Borges observou, certa vez, que Lönnrot é um nome sueco, não alemão. ‘Rot’, aqui, significa ‘raiz’ e não ‘vermelho’. E ‘lönn’ quer dizer ‘carvalho’, e não ‘ocultamento, como pretenderam alguns. O sueco, como os demais idiomas germânicos (inclusive o inglês), tem a prática de construir palavras compostas por dois ou mais substantivos, um fato discutido por Borges em ‘Las kenningar’ (…). O nome de Lönnrot, ‘raiz de carvalho’, relaciona-se, através do substantivo ‘lönn’ (que, segundo o sempre perspicaz John Sturrock, “não parece significar nada importante”) com uma interessante série de outras palavras: ‘lönnbrännare’, destilador ilegal; ‘lönndom’, secretamente, clandestinamente; ‘lönndörr’, porta secreta; ‘lönngang’, corredor oculto; ‘lönnkrögare’, negócio ilegal que vende genebra; ‘lönnlig’, secreto, solapado; ‘lönnmord’, asesinato; ‘lönnmorda’, assassinar; ‘lönnmördare’, assassino; ‘lönnrum’, quarto secreto. Com exceção da ‘genebra ilegal’, todos estes conceitos têm a ver com o relato, confirmando novamente que Borges tinha um conhecimento preciso do  significado das palavras utilizadas e, neste caso, do significado do nome de Elias e Erik Lönnrot.”[5]

A polêmica em torno das origens dos nomes confirma, de qualquer maneira, a preocupação borgeana com jogos lingüísticos e de raciocínio e a equivalência entre Lönnrot e Scharlach. Borges, ao falar do conto em uma entrevista do final dos anos 1970, destacou a identificação entre detetive e criminoso e lamentou não ter deixado mais clara a fusão entre ambos:

“(…) é um lindo conto policial. Mas tenho que reescrever esse conto. Para que se entenda que o ‘detetive’ já sabe que a morte o espera no final. Não sei se destaquei isso. Porque, senão, o detetive parece um tonto. Seria melhor que ele soubesse tudo isso, já que o outro é ele, já que quem o mata é ele. Discorrem da mesma forma, pensam igual.”[6]

A simetria entre Lönnrot e Scharlach contribui para deslocar o assistente do detetive de sua habitual função de contraponto da razão analítica. O auxiliar de  Lönnrot, Comissário Treviranus, aparece apenas na metade da segunda página do texto, quando o leitor já se identificou ao investigador principal, por oposição ao criminoso. O personagem é desenhado apenas superficialmente e sua atuação é bastante discreta — principalmente se comparada à exuberância e à complexidade do raciocínio de Lönnrot.

A superficialidade de Treviranus também se expressa nas explicações que tenta dar aos crimes e que são prontamente rejeitadas pelo chefe. Já no primeiro crime, ele sugere o acaso como origem do crime:

“— Não se deve procurar chifre em cabeça de cavalo — dizia Treviranus, brandindo um imperioso charuto. — Todos nós sabemos que o Tetrarca da Galiléia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para roubá-las, terá penetrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se; o ladrão teve que matá-lo. Que lhe parece?”

A resposta de Lönnrot, categórica, rebaixa Treviranus ao lugar em que os assistentes de detetives de ficção costumam ser colocados:

“— Possível, mas não interessante — respondeu Lönnrot. — O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente. Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão.”[7]

Os pecados de Treviranus são de várias ordens: ele carece de imaginação, prefere o improviso à reflexão e contenta-se com o banal. As réplicas antecipadas de Lönnrot revelam ainda a razão precária e limitada de seu auxiliar, incapaz de criar hipóteses “interessantes” para a razão decifradora, que exige, por sua vez, adequação, coerência e seqüência no raciocínio e na solução do investigador.

O diálogo prossegue e o prosaísmo e a superficialidade de Treviranus ficam mais claros:

“— As explicações rabínicas não me interessam; o que me interessa é a captura do homem que apunhalou este desconhecido.”[8]

Lönnrot, à beira do ensimesmamento do analista compulsivo que é, expõe, em resposta, os primeiros indícios: os livros guardados no armário do quarto do rabino. O narrador, que emula o leitor e parece concordar com a posição do detetive, destaca o simplismo de Treviranus, ao comentar seu “temor”, “quase repulsa” e riso quando olha os livros. A oposição é óbvia: o livresco e culto Lönnrot diante do pragmático e superficial Treviranus.

Um novo corte na narrativa, produzido por duas pequenas interpolações, impede que a ligação entre os colegas se rompa definitivamente: primeiro, um jornalista judeu — personagem esporádico, mas importante — ironiza a hipótese religiosa levantada por Lönnrot, mas ninguém lhe dá atenção; em seguida, um agente descobre uma pista que parece confirmar a suspeita do detetive de que se trata de um enigma lógico e religioso. O narrador reafirma sua aparente defesa de Lönnrot ao destacar que ele sequer comemorou sua pequena vitória (“se absteve de sorrir”) para imergir fundamente na investigação:

“Repentinamente bibliófilo ou hebraísta, ordenou que lhe fizessem um pacote com os livros do morto e levou-os para o seu apartamento. Indiferente à investigação policial, dedicou-se a estudá-los.”

A frase final revela uma ironia do narrador que até então estivera contida. Para Lönnrot, a investigação independe da realidade; toda revelação, criminal ou religiosa, está na palavra e nos livros, não coincidentemente voltados ao mistério maior do nome de Deus. A obsessão intelectual é tamanha que ele rejeita nova intervenção do jornalista judeu:

“Poucos dias depois, distraiu-o dessa erudição a chegada do redator da Yiddische Zeitung. Este queria falar do assassinato; Lönnrot preferiu falar dos diversos nomes de Deus; o jornalista declarou em três colunas que o investigador Erik Lönnrot tinha se dedicado a estudar os nomes de Deus para dar com o nome do assassino. Lönnrot, habituado com as simplificações do jornalismo, não se indignou.”[9]

Todos os personagens do conto cumprem seus papéis e prosseguem em seus itinerários: Lönnrot avança galhardamente em seus estudos hebraicos; Treviranus continua a investigar, com trabalho braçal, os crimes que se sucedem; o jornalista judeu aproxima-se de Lönnrot num esforço progressivo de romper seu isolamento livresco; o narrador, que antes concordava com o detetive, passa a ironizá-lo e, depois, a caricaturá-lo; o criminoso volta a matar e deixa pistas cada vez mais coerentes com a visão do detetive. Como em toda narrativa policial, as histórias paralelas — algumas mais explícitas, outras subterrâneas — confluem para o desfecho elucidativo e para o prevalecimento da razão analítica do detetive, que decifra o enigma e o expõe aos demais personagens e leitores.

Em meio a personagens que se duplicam e se reunificam — outra tradição da narrativa policial, já destacada por Borges nas “leis” — e a indícios que tornam Lönnrot cada vez mais convicto da correção de sua hipótese “imaginativa”, o narrador ainda aponta outro momento de tensão entre Treviranus e seu chefe:

“Na tortuosa Rue de Toulon, quando pisavam as serpentinas mortas da madrugada, Treviranus disse:

— E se a história desta noite for um simulacro?

Erik Lönnrot sorriu e leu para ele com toda a gravidade uma passagem (que estava sublinhada) da trigésima terceira dissertação do Philologus (…).

O outro ensaiou uma ironia.

— Esse dado é a coisa mais valiosa que o senhor recolheu esta noite?

— Não. Mais valiosa é uma palavra que disse Ginzberg.”[10]

A serenidade quase arrogante de Lönnrot e sua aposta no verbo mais do que nas ações pretende informar o leitor da inadequação das sugestões de Treviranus e da proximidade da resolução do mistério, sempre apoiada em palavras e em seus sentidos cifrados, só compreensíveis por especialistas. A variação de tom e de posicionamento do narrador, no entanto, já reorientou e inverteu, nessa altura do conto, a visão do leitor: a excessiva convicção de Lönnrot reduziu sua credibilidade, enquanto a desconfiança de Treviranus ganhou espaço. Na prática, o narrador se impõe cada vez, tornando-se mais visível e enfático — por exemplo, quando atesta que Treviranus era “indiscutível merecedor de tais loucuras”[11] ou quando explicita a ficcionalidade do relato e da geometria urbana em que Lönnrot se apoia para construir sua interpretação definitiva e chegar ao local do último crime: “Ao sul da cidade de meu conto flui um cego riacho de águas barrentas.”[12]

O prevalecimento da ficção também antecipa outra ficcionalidade: a da solução encontrada por Lönnrot que, coerente com seu esforço exclusivamente intelectual, despreza as condições concretas dos crimes:

“Lönnrot considerou a remota possibilidade de que a quarta vítima fosse Scharlach. Depois, rejeitou-a… Virtualmente, tinha decifrado o problema; as meras circunstâncias, a realidade (nomes, prisões, rostos, trâmites judiciais e carcerários), quase não o interessavam agora. Queria passear, queria descansar de três meses de investigação sedentária. Refletiu que a explicação dos crimes estava num triângulo anônimo e numa poeirenta palavra grega. O mistério quase lhe pareceu cristalino; sentiu vergonha de ter lhe dedicado cem dias.[13]

A menção ao sedentarismo esclarece a eventual dúvida que a primeira adjetivação da perspicácia de Lönnrot pudesse ter deixado: ela não era “temerária” por se lançar ao aventureirismo característico das histórias de ação, mas porque excedia em outros jogos, os da razão, e perdia a conexão com o mundo real. Essa irrealidade lhe é fatal: o previsível e definitivo encontro com Scharlach nas últimas páginas do conto apenas confirma o percurso enunciado pelas pistas que o narrador deixou e que conduziram os leitores a perceber o engano de Lönnrot, envolvido pela rede de indícios falsos com que o criminoso o atraiu para consumar sua prometida vingança.

Em seu conto mais caracteristicamente policial, Borges utiliza inúmeros recursos: o sentido autorreferente do relato, características gauchescas sob títulos afrancesados[14], dados religiosos. Erik Lönnrot, o detetive, traça a cuidadosa geometria que caracteriza os policiais analíticos, e essa geometria é aplicada ao desenho da cidade de Buenos Aires. Seu interesse lógico impede, por exemplo, que busque qualquer explicação não-matemática para os crimes. E tudo acontece de forma invertida: a visão simplista e prosaica de seu auxiliar é a correta e a sua é fantasiosa. Lönnrot insiste até o fim na correção de sua interpretação. Antes de morrer, adverte Scharlach da imprecisão no desenho dos crimes e lhe pede uma segunda chance que, na prática, implica em infinitos encontros repetidos entre ambos:

“Já era noite; do poeirento jardim subiu o grito inútil de um pássaro. Lönnrot considerou pela última vez o problema das mortes simétricas e periódicas.

— No seu labirinto sobram três linhas — disse por fim. — Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha tantos filósofos se perderam que bem pode nela se perder um mero detetive. Scharlach, quando noutro avatar o senhor me caçar, finja (ou cometa) um crime em A, logo um segundo crime em B, a oito quilômetros de A, em seguida um terceiro crime em C, a quatro quilômetros de A e de B, na metade do caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a dois quilômetros de A e de C, de novo na metade do caminho. Mate-me em D, como agora vai me matar em Triste-le-Roy.

— Para a outra vez que o matar — replicou Scharlach —, prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha reta e que é invisível, incessante.

Retrocedeu alguns passos. Depois, muito cuidadosamente, abriu fogo.”[15]

Conforme o narrador informara e prometera no parágrafo inicial, Lönnrot conseguiu prever o último crime — o que mostra algum sucesso de sua investigação — mas não pôde impedi-lo. A cena final, como em toda narrativa policial, é o ápice do texto. Nela, a imaginação e o raciocínio do assassino e do detetive, que até então estiveram sincronizados e espelhados à distância, mas correram em paralelo, são mostrados em detalhes. Nela, o leitor percebe que as duas histórias que existem em toda ficção policial (a do crime e a da investigação) podem ser unificadas. Nela, ocorre a revelação do enigma e a demonstração de como foi decifrado.

O final de “A morte e a bússola”, porém, reserva uma surpresa a mais para o leitor: quem explica o crime é o assassino, não o investigador. Podemos também perceber que mesmo em seu aparente sucesso — a previsão da última morte — Lönnrot foi derrotado por Scharlach: o detetive não propriamente previu o desfecho; foi levado a ele pela trama preparada pelo criminoso. O crime a ser decifrado não era o que ocorrera no passado (ou: no início do texto), mas o que ocorreria no futuro (ou: o que é cometido na última frase do conto).

No longo jogo de duplos, prevalece o engano que move a trama. Alma Bolón Pedretti destaca a projeção do engano no momento da leitura:

“O leitor faz sua parte, pedindo para ser tomado pela ilusão. Borges, como um mágico bem educado, primeiro nos oferece a solução e, depois, a desdobra e a entrega: desde o primeiro parágrafo, conhecemos todos os elementos fundamentais da história. O leitor conhece a verdade — leu direito este primeiro parágrafo — e, no entanto, continua a ler até que a verdade prevaleça. Esse prosseguimento atende ao desejo de engano do leitor.”[16]

O leitor que busca ser iludido, mais do que conhecer a verdade, é uma das variações que Borges provoca no gênero: é o duplo do leitor poeano, ambos derivados da lógica analítica do policial, ambos produzidos pelo reconhecimento da eficácia do gênero como inventor de novas condições de leitura. Em “A morte e a bússola”, os leitores são anteriores e posteriores ao texto: primeiro, aprenderam com Poe e seus sucessores; depois, com Borges e seus precursores. Esses leitores estão em toda parte, dentro e fora do texto. Por isso, é até possível que enxerguemos na ironia e no humor negro que percorrem o relato estratégias sutis, mas verossímeis, de se referir à polícia real, tantas vezes confusa e desorientada, tão diferente da fictícia, que é sempre racional e precisa. Muito além, porém, de ocasionais e incertas referências do texto ao mundo real, Borges transpõe para o universo da narrativa policial sua preocupação constante com a leitura e com as formas de aproximação do texto literário. Não é à toa que Lönnrot — destaca Cristina Parodi — confunde sua atuação como detetive com a de um leitor:

“Como todo detetive, Lönnrot é um raciocinador dedutivo: a partir de detalhes menores elabora uma explicação dos fatos, que repousa sobre débeis probabilidades. Mas não é apenas um ‘puro raciocinador’, como Dupin; é sobretudo um leitor, a quem só interessam os indícios textuais (…). Lönnrot é um detetive que só atende a indícios textuais, que alimenta suas intuições com a leitura de mais textos, e os organiza em um relato. Para imaginar a história do assassinato, deve duplicar o assassino, reproduzir sua conduta, recompor o modelo do crime. Supõe um assassino artista, como o Flambeau de Chesterton, que, em seus crimes, busca uma realização estética  (…). ”[17]

A surpresa do desfecho — prossegue Parodi — vem exatamente de percebermos que ele não é o único leitor, nem o melhor:

“Paradoxalmente, o desenlace lhe revela [a Lönnrot] que, enquanto acreditava ler as pistas deixadas pelo assassino, estava sendo lido por ele; enquanto escrevia uma trama para explicar a série de assassinatos, era o personagem inconsciente de um drama escrito pelo assassino; enquanto acreditava atuar livremente, estava se comportando segundo as leis de um relato projetado por outra mente. O leitor também é lido, o escritor também é escrito, ambos são textos, as leis do universo são as da ficção. Por seu lado, Scharlach também é um leitor, que compartilha com Lönnrot pelo menos algumas de suas leituras.”[18]

Scharlach, ao ler nos jornais sobre o assassinato do rabino, engendra uma história que ganha, além de Lönnrot, muitos outros leitores da história. Parodi detalha:

“[Scharlach] seleciona (em textos) mais indícios para escrever uma história, cujo leitor ideal será aquele que a ler como a história da investigação de um crime passado, sem suspeitar que se trata da história de um crime futuro. Leitores ideais serão Lönnrot e aqueles leitores de ‘A morte’ que, tal qual o detetive, se surpreenderem ante o desenlace inesperado. O quadro se complica se incluirmos os leitores do relato escrito por Borges. ‘A morte’ se apresenta abertamente como um artifício textual, uma ficção criada/narrada por um eu que a reconhece como criatura (‘Ao sul da cidade de meu conto’). Apresenta-se também como um caso policial; nós, leitores, sabemos então que estamos frente a um relato da investigação realizada pelo detetive para reconstruir a história de um crime. Com nossa leitura, colaboraremos com o detetive na criação dessa história. O que ignoramos é que, no texto, se esconde outro criador, Scharlach, que está escrevendo sua própria história, e que a escreve empregando os mesmos recursos, indícios e signos que o detetive emprega para escrever a sua. Para chegar à solução do enigma, os leitores deveriam dominar uma complexa estratégia de leitura que exige a duplicação simultânea do narrador, do detetive e do assassino, para decifrar as armadilhas que o assassino deixa para Lönnrot, as que o narrador deixa para os leitores e as que lhes prepara o escritor que, dentro do relato, escreve sua própria trama.”[19]

A própria conclamação final de Lönnrot, que sugere uma geometria distinta para a próxima vez em que Scharlach o for matar, indica sua disposição autoral e permite — afirma Hector Yankelevich — a aparição de uma das mais célebres metáforas de Borges, o labirinto, e a revelação de que também este, mesmo em sua regularidade aprisionadora, é plural, se apresenta sob várias feições, mas mantêm o primado geométrico e racional do mundo:

“Nosso mundo então, é a composição de dois labirintos, o das quatro letras impronunciáveis, e aquele de Aquiles e da tartaruga, ou seja, o da continuidade. O hebreu e o grego. O primeiro rege o ordenamento das bibliotecas e das línguas. O segundo, o impossível acesso ao Outro. Suas origens são diferentes, e nada prevê ou anuncia, num deles, a necessidade do outro. Mas por motivos certamente incalculáveis, ambos presidem, um e outro, (…) os trilhos de nossos destinos. O erro de Lönnrot foi acreditar que existem apenas ocorrências necessárias, que a ordem das letras apenas obedece a uma só modalidade. Ele morre por ter empobrecido a lógica.”[20]

Em meio à espiral de leituras e de lógicas precisas que “A morte e a bússola” permite, é inevitável testar a aplicação, por Borges, das “leis” que formulara uma década antes. Todas são cumpridas, inclusive a que defende a vitória completa da razão, independentemente desta estar a serviço da justiça. Mas duas das leis parecem receber especial atenção: a que exige a declaração de todos os termos do problema e a que determina a necessidade de um só resolução possível e que ela maravilhe o leitor. O privilégio não é casual, pois são exatamente estas regras que regulam, de forma mais direta, a relação entre texto e leitor; elas afirmam o compromisso que os liga e estabelecem as possibilidades (e limitações) da leitura. Por isso, este conto de Borges não é apenas sua melhor narrativa policial; é, sobretudo, sua insistência na caracterização do gênero segundo os princípios antes firmados por Poe e por Chesterton.

A rota dos precursores eleitos evidentemente sofre desvios e variações na reescritura borgeana. Parodi afirma, por exemplo, que Borges “subverte o modelo do policial”, ao alterar radicalmente as estratégias de leitura e oferecer um amplo repertório de paradoxos:

“Os leitores não encontram um mundo de sentido unívoco, mas múltiplo e caótico, que abunda em duplicidades e inversões (um rio com águas da cor do deserto; um hotel com aparência de torre, sanatório, prisão e bordel; uma chácara ‘infinita e crescente’, que é um labirinto; um seqüestro que é a duplicação de uma cena já vivida; uma cor que se repete no nome do detetive e no apelido do assassino; um criminoso — Scharlach, o Dândi — que demonstra uma qualidade tradicional nos detetives desde as primeiras figuras do gênero; um detetive que consegue imaginar uma solução para o enigma porque o assassino o constrói à sua medida; uma hipótese que é verdadeira porque prova ser falsa).”[21]

A subversão borgeana faz com que a afirmação, habitual no policial, de que o detetive “lê o texto do criminoso” não seja, em “A morte e a bússola”, apenas uma metáfora; é o desenvolvimento, na forma de ficção, de uma concepção acerca das formas de construir e difundir conhecimento, da relação entre escritor e leitor — o que Poe inventou e todos os outros que se dispõem a seguir pistas não necessariamente criminais a cada texto que leem e notar, em seu interior, a convivência entre duas ou mais histórias.[22] É também a retomada de uma analogia originalmente proposta por Chesterton no conto “A cruz azul”:

“E julgava Valentin que seu cérebro de detetive era tão bom como o do criminoso, o que era verdade. Mas estava de todo ciente de sua desvantagem: ‘O criminoso é o artista criador; o detetive é só o crítico’, disse com um sorriso amargo (…)”[23]

Escritor atento, capaz de desencadear a espiral de leituras, Scharlach é o verdadeiro artista e Lönnrot, o crítico em desvantagem. As leituras de ambos, em confronto, movem a narrativa e preparam o desenlace face-a-face, artista e crítico: leitor e leitor. Ricardo Piglia comenta o diálogo final e constata:

“Sem esse livro imaginário [a História da seita dos Hassidim] — sem essa cena decisiva e sarcástica em que um assassino usa um livro para capturar um homem que acredita apenas no que lê —, não haveria história. Temos que imaginar, portanto, Scharlach, um dândi sanguinário e sinistro, como leitor. O que lê, por quê, quando, em que situação? Lê para vingar-se de Lönnrot, portanto lê para Lönnrot e contra Lönnrot, mas também lê com ele. Lê a partir de Lönnrot (como Borges nos recomenda alguns textos ler a partir de Kafka), para seduzi-lo e capturá-lo em suas redes. Infere, deduz, imagina sua leitura e a duplica, confirma-a. Trata-se de uma espécie de bovarismo forçado, porque Scharlach na verdade obriga Lönnrot a atuar o que lê. A fé está em jogo. Lönnrot acredita no que lê (não acredita em outra coisa); poder-se-ia dizer que lê ao pé da letra. Ao passo que Scharlach, por sua vez, é um leitor displicente, que usa o que lê para seus próprios fins, tergiversa e  transporta o que lê para o real (como crime). Evidentemente, Scharlach e Lönnrot (ou seja, o criminoso e o detetive) são duas maneiras de ler. Dois tipos de leitor confrontados.”[24]

Dois tipos de leitores em choque e duas razões diferentes, mas cada uma, a seu modo, ativa, desejosa de participar da elaboração do texto. A estratégia do assassino-leitor, porém, lembra Piglia, é mais ampla e profunda, equivale à crítica e ainda é marcada pelo passado e determinada à vingança, à superação:

“O leitor como criminoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. Lê mal, mas apenas no sentido moral; faz uma leitura cruel, rancorosa, faz um uso pérfido da letra. Poderíamos pensar na crítica literária como um exercício desse tipo de leitura criminosa. Lê-se um livro contra outro leitor. Lê-se a leitura inimiga. O livro é um objetivo transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações.

Scharlach usa o que lê como armadilha, como maquinação sombria, como superfície em branco sobre a qual os corpos deslizam. Em certo sentido, é o leitor perfeito; difícil encontrar uso mais eficaz para um livro. Provisoriamente, é o oposto do leitor inocente. Scharlach realiza a ilusão de D. Quixote, só que deliberadamente. Realiza na realidade o que lê (e o faz para outro). Vê no real o efeito daquilo que leu.”[25]

Borges, ele mesmo, foi esse tipo de leitor que Piglia associa a Scharlach: realizava transações com suas leituras, interpretava, ultrapassava, desviava, traía, reescrevia. No contexto de sua obra, a leitura é valorizada e se torna fundamento e objetivo pleno da escritura

“Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (…), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura. (…) Ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imaginário e o real. Melhor seria dizer: a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade. Não existe nada mais simultaneamente mais real e ilusório do que o ato de ler.”[26]

Seguindo a trilha conceitual identificada por Chesterton, Borges conformou uma epistemologia derivada do modelo policial e alterada no processo de ficcionalização. Por isso, Ernesto Sábato chega a dizer que “A morte e a bússola” é uma síntese da obra borgeana, de sua paixão pelas geometrias perfeitas, pelos nomes, pela ironia, pelos silogismos, pela reinvenção imaginária do real. Tudo isso numa estrutura de conto policial, mostrando que as relações de Borges com o modelo superaram o interesse de leitor e escritor e se transformaram no centro de sua preocupação estética e intelectual:

“Em A morte e a bússola se dá um passo a mais [em relação à matriz poeana do policial] e a realidade se converte em geometria. (…) Borges desenvolve um problema de lógica e geometria. O pistoleiro Red Scharlach odeia o detetive Erik Lönnrot e jura matá-lo. Este é o único elemento psicológico, mas é apenas o motor que põe em marcha a maquinaria matemática. Como Borges, o criminoso ama a simetria, o rigor geométrico, o número, o silogismo; de forma que pensa e executa o plano matemático (…). Neste conto não se cometem assassinatos; demonstra-se um teorema. Os crimes do pistoleiro não emocionam de forma diferente que o resultado a2 + b2 = h2 do teorema de Pitágoras. Ou seja, há uma emoção, mas não é sensorial, e sim intelectual, do tipo que as teorias filosóficas ou as inferências científicas produzem. A cidade em que Red Scharlach comete seus crimes é Buenos Aires, mas parece não ser; é conhecida, mas irreal; os nomes de suas ruas são fantásticos, os nomes de seus habitantes são inacreditáveis, a frieza de suas atitudes é inumana.”[27]

Também Yankelevich afirma que o conto ajuda a compreender o conjunto da obra de Borges, e não apenas sua relação peculiar com o policial:

“‘A morte e a bússola’ é um exemplo extremamente singular da estrutura da ficção borgeana. Imitação da novela policial (que pretende parecer um pastiche de ‘A carta roubada’, de Poe), perfeição da maquinação intelectual, obsessão do duplo, sofisticação do crime, detalhes grotescos, citações falsas, mas efetivo conhecimento de suas referências: tudo concorre para que seja uma de suas grandes narrativas.”[28]

A atribuição de papel paradigmático de toda a obra de Borges a este conto pode soar exagerada, mas indica a importância da narrativa criminal na conformação da ficção borgeana. Mais do que isso, e juntamente com a eleição de Poe e Chesterton como precursores, revela a irradiação do modelo policial para o restante de sua obra individual e para parte da obra em colaboração.

Por meio da eleição de afinidades literárias, da invenção de precursores e da constituição de um conjunto de procedimentos textuais, a narrativa policial significou, para Borges, um passo decisivo na fundação do que Emir Rodríguez Monegal definiu como uma “poética da leitura”[29] e que inclui o rigor racional na constituição do texto, a auto-identificação do autor como leitor e amanuense de textos alheios e, sobretudo, a fundação de um diálogo peculiar com os futuros leitores: múltiplos, sucessivos e desconfiados leitores, dispostos a participar nos jogos de raciocínio propostos por Borges, mesmo quando eles não vêm acompanhados de um crime a ser decifrado. Borges, um autor de policiais mesmo quando a narrativa não é policial.

 

[1] Texto enviado por Júlio Pimentel Pinto às alunas e aos alunos de História da Cultura 4, durante o período de isolamento.

[2] “A morte e a bússola” foi publicado em versão pré-original em Sur, nº 92, maio de 1942, e republicado na antologia Los mejores cuentos policiales (seleção e tradução de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares). Buenos Aires: Emecé, 1943. A partir de 1944, passou a integrar as edições de Ficções. Cf. Jorge Luis Borges. Œuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1993 (organização e notas por Jean Pierre Bernès), p. 1589.

[3] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (tradução: Davi Arrigucci Jr.), p. 121.

[4] John Irwin. The Mistery to a Solution. Poe, Borges and the Analytic Detective Story. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994, p. 30. A mencionada nota de Borges ao conto aparece na edição norte-americana organizada por Norman Thomas di Giovanni. The Aleph and Other Stories. Nova York: Dutton, 1978, p. 269. Irwin cita o McKay’s Modern English-Swedish and Swedish-English para lembrar que lönnrot, no sueco atual, significa “árvore de bordo” (maple tree), mas insiste que a referência borgeana a rot como “vermelho” permite decompor o nome.

[5] Daniel Balderston. “Fundaciones míticas en “La muerte y la brújula”. Variaciones Borges 2 (1996). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 126-127. Ao contestar os autores que buscam origens alemãs para os nomes dos personagens, Balderston critica especialmente John Sturrock (Paper Tigers. The Ideal Fictions of Jorge Luis Borges. Oxford: Clarendon Press, 1977) e prossegue em seu trabalho de identificação de referências históricas na obra de Borges. No caso, busca associar o detetive de “A morte e a bússola” a Elias Lönnrot, que ele mesmo define: “Elias Lönnrot (1802-1884), apesar do nome sueco, é um dos criadores intelectuais da Finlândia moderna. Discípulo de Herder, Lönnrot é o mais importante dos intelectuais finlandeses do período imediatamente posterior à cessão da Finlândia pela Suécia a Rússia, em 1809.” Idem, p. 127.

[6] Borges el memorioso. Conversaciones de Jorge Luis Borges con Antonio Carrizo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1982, p. 229-230. As entrevistas foram feitas entre julho e agosto de 1979. Alma Bolón Pedretti insiste na presença dos duplos como estratégia borgeana de variar a clássica perseguição de um homem por outro homem: “De saída, uma imagem salta aos olhos: ‘A morte e a bússola’ trata da caça de um homem. Mesmo se o caçador e a presa gostam de se duplicar e trocar de posição. Pois, na prática, esta história de caça a um homem tem, na sua pré-história, uma história de caça a um homem. A caça — assunto só dos dois — se desdobra no presente e em direção ao passado: conta-nos a história de um homem que persegue um outro que, por sua vez, o persegue para vingar a perseguição de que seu irmão foi vítima no passado. Naturalmente, o itinerário é repleto de peças, ou seja, de objetos duplicados, passíveis de se tornar algo diferente do que são. Objetos que, por definição, pregam peças na realidade, com a condição de que a ilusão que propõem seja levada a sério. É o que Erik Lönnrot não deixa de fazer.” “Une éloge du leurre à propos de ‘La muerte y la brújula’”. Variaciones Borges 5 (1998). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 87.

[7] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções, p. 122-123.

[8] Idem, p. 123.

[9] Idem, p. 124. Sylvia Saítta destaca o personagem-jornalista e do próprio jornal e encara sua presença no conto como uma variação, operada por Borges, do uso que Poe dá ao jornal: “As funções do jornalismo no relato policial se invertem: enquanto que em “O mistério de Marie Roget”, de Edgar Allan Poe, Auguste Dupin resolve o caso lendo os jornais, neste relato [de Borges] é o assassino que constrói a trama do assassinato porque leu: Scharlach se inteira, pelos jornais, que Lönnrot entendeu literalmente a frase escrita por Yarmolinsky antes de morrer, e essa leitura, em vez de desvendar o enigma policial, o constrói. Lönnrot desdenha da versão que o jornalismo dá de suas investigações — habituado, diz o texto, ‘às simplificações do jornalismo’ — e cai na armadilha (ou escolhe se encaminhar à chácara de Triste-le-Roy) não pela falácia de seus raciocínios, que são, do ponto de vista abstrato e racional, impecáveis, mas porque leu o texto errado: leu os relatos de Poe, e não os relatos de massa. Lönnrot despreza a versão do Yidische Zaitung, mas também descarta as hipóteses pouco interessantes do comissário Treviranus porque os relatos de Poe bloqueiam tanto o relato do jornalismo quanto o relato oral que provém da experiência.” “De este lado de la verja: Jorge Luis Borges y los usos del periodismo moderno”. Variaciones Borges 9 (2000). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 79-80.

 

[10] Idem, p. 127-128.

[11] Idem, p. 128.

[12] Idem, p. 129.

[13] Idem, p. 129-130.

[14] Em “O escritor argentino e a tradição”, Borges comenta a escritura de “A morte e a bússola” e sua preocupação em descaracterizar, na ambientação, as marcas dos arredores de Buenos Aires e misturar material gauchesco com referências europeias, conformando um relato simultaneamente argentino e cosmopolita: “Permitam-me aqui uma confidência, uma mínima confidência. Durante muitos anos, em livros agora felizmente esquecidos, tentei descrever o sabor, a essência dos bairros extremos de Buenos Aires; naturalmente utilizei muitas palavras locais, não prescindi de palavras como cuchilleros, milonga, tapia, e outras, e assim escrevi aqueles esquecíveis e esquecidos livros; depois, há quase um ano, escrevi uma história que se chama ‘A morte e a bússola’, que é uma espécie de pesadelo, um pesadelo em que figuram elementos de Buenos Aires deformados pelo horror do pesadelo; penso ali no Paseo Colón e o chamo Rue de Toulon, penso nas chácaras de Adrogué e as chamo Triste-le-Roy; publicada essa história, meus amigos me disseram que finalmente tinham encontrado no que eu escrevia o sabor dos arredores de Buenos Aires. Precisamente porque não me propusera a encontrar essse sabor, porque me abandonara ao sonho, pude conseguir, ao fim de tantos anos, o que antes busquei em vão.” Discussão. Obras completas. volume I. 1923-1949. São Paulo: Globo, 1998 (tradução: Josely Vianna Baptista), p. 292. O texto é originalmente de 1953 e precisa ser considerado à luz das circunstâncias políticas então vividas pela Argentina e da explícita rejeição de Borges ao nacionalismo peronista. No entanto, também é possível ver, no elogio de Borges à descaracterização do ambiente em que transcorre a trama, uma recusa do realismo que o modelo do policial duro impunha à narrativa policial de então. José Fernández Vega destaca exatamente esse aspecto a partir da análise de outro texto de Borges (a resenha do libro de M. Peyrou, La espada dormida, publicada no nº 127 de Sur, em maio de 1945): “É evidente agora que a prevenção [de Borges] está dirigida, na verdade, contra o realismo a que o gênero podia derivar. Por isso, (…) [Borges] defende a ambientação das histórias policiais em cenários estrangeiros ou locais, mas deformados de tal maneira que ninguém sucumba à tentação de estender pontes para a mera realidade. (…) ‘A morte e a bússola’ exaspera a intervenção sobre a paisagem urbana de Buenos Aires — o paradigma é sempre Chesterton e o tratamento que esse autor dá a Londres” “Una campaña estética. Borges y la narrativa policial”. Variaciones Borges 1 (1996), p. 31-33.

[15] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções, p. 135. O tema do infinito e da repetição, manifestos simbolicamente na menção de Lönnrot à fábula de Aquiles e a tartaruga, são insistentes na obra de Borges.

[16] Alma Bolón Pedretti. “Une éloge du leurre à propos de ‘La muerte y la brújula’”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 89.

[17] Cristina Parodi. “Borges y la subversión del modelo policial”, in Rafael Olea Franco (org.). Borges: desesperaciones aparentes y consuelos secretos. México: El Colégio de México, 1999, p. 85 e 89.

[18] Idem, p. 89.

[19] Idem, p. 89-90.

[20] Hector Yankelevich. “La boussole de la mort. L’écriture et le crime”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 93-94.

[21] Cristina Parodi. “Borges y la subversión del modelo policial”, in Rafael Olea Franco (org.). Borges: desesperaciones aparentes y consuelos secretos, p. 88.

[22] A convivência de mais uma história na trama policial e sua associação, realizada por Ricardo Piglia, à própria estrutura do conto são discutidas no ensaio, “A zona indeterminada do real”.

[23] G. K. Chesterton. “A cruz azul”. A inocência do Padre Brown. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006 (original: 1911 ; tradução: Carlos Ancêde Nougué), p. 37. Parte dele é citado por Cristina Parodi no texto já mencionado.

[24] Ricardo Piglia. “O que é um leitor?” O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (original: 2006; tradução: Heloisa Jahn), p. 34.

[25] Idem, p. 34-35.

[26] Idem, p. 28-29.

[27] Ernesto Sábato. Uno y el universo. Barcelona: Seix Barral, 1968 (original: 1945), p. 37, consultado na versão eletrônica completa disponível em http://www.scribd.com/doc/10252457/Sabato-Ernesto-Uno-y-el-Universo (acesso em 8/10/2009).

[28] Hector Yankelevich. “La boussole de la mort. L’écriture et le crime”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 91.

[29] Emir Rodríguez Monegal. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980 (tradução: Irlemar Chiampi).

Entrevista sobre Moraes Moreira, por José Geraldo Vinci de Moraes

Recentemente a imprensa repercutiu o impacto do falecimento do compositor Moraes Moreira, revelando a grandeza do músico baiano. Para comentar e refletir o acontecimento o jornalista Gustavo Xavier, do Jornal da USP, entrevistou o professor do DH-FFLCH José Geraldo Vinci de Moraes, membro do Comitê Editorial da RH.

Qual papel os Novos Baianos desempenharam na história da música brasileira? E como você localiza a contribuição do Moraes Moreira nos Novos Baianos?
O papel ocupado pelos Novos Baianos na cultura musical brasileira foi e continua sendo muito grande. Poucos conjuntos musicais de formação duradoura e estável como ele foi alcançaram tamanha influência durante o período de sua existência nos anos 1970, e que permaneceu ativa de maneira evidente ou oculta — uma vez que artistas e conjuntos não têm a consciência clara dela — até os dias de hoje. O grupo formulou uma linguagem musical renovada e muito própria — associando e estabelecendo relações entre o Rock, o Samba, a bossa Nova, o Choro, o Frevo e assim por diante — que influenciou inúmeros compositores, bandas e movimentos musicais. E no epicentro deste processo e do conjunto estava justamente Moraes Moreira. Claro que a banda tinha um sentido coletivo que praticava musicalmente, mas também no modo de vida muito próprio da juventude daquela época: tanto é que foram morar todos juntos em um sítio em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. No entanto, o compositor mais produtivo e destacado sempre foi Moraes. Para se ter uma dimensão de sua importância, no disco mais marcante da banda, Acabou Chorare (1972), fora Brasil Pandeiro, de Assis Valente, todas as outras composições têm a participação direta de Moraes Moreira. Além disso, ele e Pepeu Gomes foram os responsáveis por todos os arranjos. Esse exemplo certamente revela o tamanho de sua influência no conjunto. Além disso, quando ele iniciou a carreira solo, a banda se desestabilizou e encerrou sua trajetória, no final dos anos 1970. Mesmo assim, Moraes Moreira e Novos Baianos não podem de modo algum ser dissociados.

Você enxerga uma rota na história musical de Moraes Moreira? Sua maneira de tocar e de compor se modificou ao longo de sua trajetória nos Novos Baianos? E depois dos Novos Baianos, como você situaria a trajetória musical dele?
Claro: como em toda trajetória artística, é possível ver em retrospectiva uma certa rota, mas com caminhos e trilhas que muitas vezes se aproximam ou se distanciam. Certamente esses trajetos nunca são pré-determinados, sobretudo na carreira dos artistas populares que constroem itinerários menos institucionais: eles vão sendo criados de maneira inventiva no cotidiano. Dos temas e práticas da juventude dos anos 70, do encontro com João Gilberto e a Bossa Nova, do reencontro com carnaval de Trio Elétricos até a docilidade da maturidade, se percebe essa diversidade criativa. Mas ao mesmo tempo ela estabelece os traços, digamos, “moreirianos” de compor, cantar e tocar, que o identificam e o singularizam. Ocorre que esses itinerários não são ascendentes e permanentemente criativos, como geralmente nos fazem crer as biografias laudatórias. O artista invariavelmente é um sujeito muito sensível, em que as delicadezas e a criatividade convivem com as angústias e muitas dúvidas. Neste frágil equilíbrio pessoal e profissional, o artista passa por aquilo que os críticos identificam genericamente como “fases” (“boas”, “ruins”, “desaparecidos” etc.). Moraes Moreira teve as suas, mas sempre as enfrentou com muita estabilidade e inventividade.

Há uma identidade perceptível no curso da obra de Moraes Moreira?
Como salientei anteriormente, claro que há uma identidade “moreiriana”, que muitas vezes se confunde com a dos Novos Baianos e nos anos 1980 com o Trio Elétrico. Mas ele transportou para esses lugares sua voz anasalada, o toque de seu violão muito singular, o ritmo incessante associado a uma delicadeza sonora evidente e permanente. E, no meio desse turbilhão afetuoso, brota a inquietude com as fusões, experiências e inventividade. Ao identificarmos traços e práticas tão marcantes, como os “moreirianos”, se percebe a grandeza da obra e influência do artista.

O que se poderia destacar das contribuições de Moraes Moreira em relação ao carnaval e, especialmente, à história dos trios elétricos?
Creio que foi enorme. Ele deu vida nova ao carnaval de Salvador ao se associar ao Trio de Dodô e Osmar, trazendo exatamente novas fusões, inventividade e delicadeza. Depois de sua participação, o carnaval baiano ganhou nova expressão. Com o tempo, as novas dimensões, que estabeleceram novas práticas e outros interesses no carnaval, deixaram Moraes muito descontente, levando-o a se afastar.

É possível identificar matrizes e referências (de gêneros, de artistas específicos, de “escolas musicais”) mais significativas/predominantes na obra de Moraes Moreira? Como ele as combinava?
Esse talvez seja um dos traços mais marcantes de sua obra: ele não seguia uma, digamos, “escola” ou “tradição”. Certamente há o Moraes roqueiro, como são evidentes os sinais do violão e a voz bossanovistas; a influência do samba, do choro e do frevo são cristalinos e perfeitamente audíveis em sua obra; assim como seu interesse pela música de carnaval e outros gêneros da cultura musical oral são tangíveis. Acontece que em nenhum desses casos é possível qualificá-lo rigorosamente como “sambista”, “chorão”, “roqueiro” etc. Sua prática era das fusões, combinações e inventividade.

Um procedimento musical muito comum na história da música brasileira foi o recurso aos elementos da tradição oral/folclore. Isso também está presente no Moraes Moreira? Como
Creio que parte da resposta já foi indicada na pergunta logo anterior. Ele usava claramente esses elementos que faziam parte de sua formação e interesses. Mas os manuseava de maneira inteligente e criativa, combinando-os de diversos modos. Aliás, é preciso que se diga que isso não é uma novidade, já que se trata de uma prática cultural que faz parte da dinâmica da música popular no Brasil. A novidade está na forma totalmente peculiar e original em que Moraes Moreira faz uso e combinações, e que fazem dele um artista maior.

 

Braudel e a longa duração – mensagem de Miguel Palmeira aos estudantes de Metodologia

Caras e caros, [1]

volto a uma discussão que tivemos em nossa segunda aula (e a única de conteúdo) para comentar um artigo clássico de Fernand Braudel (1902-1985), “História e ciências sociais: a longa duração”, originalmente publicado na revista Annales: Économies, Sociétés, Civilisations em 1958 e editado em português em 1965, com tradução de Ana Maria Camargo para a Revista de História (ver http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/123422).

Ao discutirmos em sala um dos capítulos de Doze lições sobre a história, vimos que Antoine Prost defende a tese de que, no seio das ciências humanas, a História se distingue por sua preocupação com a dimensão diacrônica dos fenômenos sociais. Ou seja, é como se historiadores e historiadoras, entre seus pares da Antropologia, da Sociologia, da Geografia etc., fossem os mais insistentes em lembrar que a vida em sociedade só se explica por referência ao tempo ou aos tempos em que ela tem lugar.

Conforme foi dito em sala de aula, a tese nada tem de original. Certa ou errada, ela é constitutiva da História como profissão. Na historiografia francesa, essa ideia foi afirmada, por exemplo, como ponto de partida da reflexão desenvolvida por Marc Bloch em Apologia da História (livro póstumo publicado em 1949). Fernand Braudel, que nos anos 1950 dirigia a revista que Marc Bloch fundara com Lucien Febvre em 1929 (os Annales), ocupou-se da relação dos historiadores com o tempo em vários trabalhos. De modo mais sistemático, porém, Braudel debruçou-se sobre a questão justamente no artigo de 1958, objeto do meu comentário desta semana.

Em 1958, Braudel tinha um prestígio intelectual consolidado na disciplina histórica e um poder institucional bastante considerável no campo intelectual francês. O que ele dizia, portanto, tinha um peso relevante nas discussões historiográficas da época. Havia ainda um contexto intelectual específico que tornava aquela sua intervenção relevante. À época, havia se acirrado na França uma disputa pela definição da disciplina hegemônica nas ciências humanas. Os historiadores, embora detentores de um saber muito valorizado no sistema de ensino e na sociedade francesa, vinham sendo questionados como se fossem os representantes de um pensamento retrógrado no estudo das sociedades humanas. Esse pensamento retrógrado se caracterizaria por uma valorização do “sujeito” na história, como se no primeiro plano de interesse dos historiadores estivesse sempre aquilo que os os indivíduos fazem de maneira pensada, consciente. Contra tal perspectiva levantavam-se diferentes variedades de estruturalismo. Tendo como encarnação mais emblemática a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, o estruturalismo voltava seu olhar não para as expressões conscientes da vida social, mas sim para suas estruturas inconscientes. Com seu artigo sobre a “longa duração”, Braudel entrava nessa discussão de maneira engenhosa, contrapondo-se tanto aos historiadores “retrógrados” quanto aos críticos que eles haviam incitado nas disciplinas vizinhas.

A perspectiva estruturalista por vezes derivava para uma redução do papel dos historiadores ao de coletores de fatos, isto é, de fornecedores de materiais que alimentariam as teorias de profissionais (antropólogos, linguistas, filósofos etc.) supostamente mais gabaritados – ainda que um pensador sofisticado como Lévi-Strauss jamais tenha dito algo dessa ordem explicitamente. Contra isso, Braudel apresentava de maneira muito particular a ideia de que a História, ou melhor, a História tal como ele e os historiadores dos Annales entendiam, era uma ciência social de pleno direito. Os cientistas sociais, dizia ele, de modo geral conhecem mal o trabalho dos historiadores. Estes não mais rezariam pela cartilha das filosofias do sujeito, às quais o estruturalismo os associara. A História era, para o autor, a ciência incumbida de explicar um aspecto crucial da existência humana: “essa duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são somente a substância do passado, mas também a matéria da vida social atual”. Residiria aí a importância da disciplina: sua capacidade de desvendar a “dialética da duração”, isto é, a oposição entre o instante fugaz e o tempo longo e lento. Seja para o passado ou para o presente, “uma consciência clara dessa pluralidade do tempo social é indispensável para uma metodologia comum das ciências do homem” (Braudel, 1958, p. 726). Como a ciência das durações inscritas nas estruturas sociais, a História não só não se reduzia a fornecedora de fatos para as teorias alheias, como empregava um modo próprio e percuciente de apreender o social; ela era “a explicação do social em toda sua realidade” (Braudel 1958, p. 738), o que a habilitava a ter certa ascendência sobre outras ciências sociais.

A categoria-chave do texto de Braudel é a de duração. O tempo não escoa de maneira uniforme ao longo da história: ele alterna seus ritmos. Como ciência dos homens no tempo que é, a História deve se dotar dos instrumentos adequados para distinguir esses diferentes ritmos que regulam a vida social. A duração é, portanto, simultaneamente um dado de realidade (os processos podem de fato ser mais lentos ou mais rápidos) e uma ferramenta heurística (nosso olhar deve ser devidamente modulado para explicar a duração específica dos processos de que nos ocupamos).

Braudel avança lembrando que o trabalho do historiador sempre supõe um recorte do tempo. Tal operação o autor recomenda que façamos observando três formas distintas de espessura temporal. A primeira é o “tempo curto”, caro à história tradicional, que faz sobressaírem os indivíduos, o cotidiano, os acontecimentos medíocres e as tomadas rápidas de consciência. Em seguida, Braudel nos fala de um “tempo médio”, ao qual é afeita a história econômico-social. Aqui, os ciclos de dezenas de anos assumem um valor explicativo. Esse recorte do tempo permite distinguir os movimentos da economia (como a subida ou a queda dos preços, por exemplo). Finalmente, o “tempo longo”: a história de longa ou muito longa duração. Esse é o tempo das estruturas, das relações estáveis que se observam na vida social. A história estrutural seria uma história daquilo que tem uma permanência secular – daquilo, portanto, que custa a se modificar. Um bom exemplo dela, aponta o autor, seria seu próprio livro sobre o Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II: a noção de capitalismo mercantil desenvolvida nesse trabalho era o produto de uma mirada de longa duração no domínio econômico, pois identificava os elementos que davam liga à economia da Europa entre os séculos XVI e o XVIII.

Há muito mais do que isso no texto, e por isso eu lhes recomendo que o leiam. Menciono apenas mais um traço seu, que se comunica diretamente com o chamado de Antoine Prost a que historiadores hierarquizem temporalidades desiguais. Vocês encontrarão no artigo declarações conciliatórias de Braudel sobre não se privilegiar uma forma de história sobre a outra. De fato, porém, ele estabelece uma hierarquia causal entre seus tempos. Com a história lenta, ele nos dirá, “a totalidade da história pode se pensar a partir de uma infraestrutura”; “todos os andares (…), todas as milhares de fragmentações do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela. ” (Braudel, 1958, p. 734). Noutras palavras, a estrutura comanda o evento, mas o contrário jamais se verifica. Se isso não anula por completo o interesse dos eventos, estabelece-os como epifenômenos, como consequência de um processo essencial, estruturado, lento. Há uma escala de valores distintos dos tempos, de seus poderes causais e, por conseguinte, dos pesquisadores que se ocupam de um tempo forte e de um tempo fraco (vale dizer, essa é uma formulação que Braudel atenuaria bastante em textos posteriores).

Eis por que Prost termina o capítulo que discutimos evocando Braudel. Suas páginas finais são dedicadas a demonstrar como os historiadores trabalham com o tempo: eles constroem períodos, o que, no estudo histórico, equivale a construir unidades de sentido específicas. Essa é uma operação incontornável, dirá o autor, mas também plena de problemas. E foi Braudel, sugere Prost, quem melhor se houve com tais desafios.

 

Referências bibliográficas

BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales : la longue durée. Annales E.S.C., vol. 13, n. 4, outubro-dezembro 1958, pp. 725 – 753.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Ana Maria Camargo. Revista de História, vol. 30, n. 62, abril-junho de 1965, pp. 261-194.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Rui Nazaré. In: BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990, pp. 7-39.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Flávia Nascimento. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério Forastieri da (orgs.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 86-121.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, cap. 5 (“Os tempos da história”).

 

[1] Comentário enviado a alunas e alunos de Metodologia I durante o período de isolamento social do primeiro semestre de 2020.

“O” Vírus – texto de Stella Franco

“O” Vírus

Stella Franco
Professora do Departamento de História da USP

Você já deve ter tido, nesses últimos dias, a sensação bizarra de viver um cárcere privado enquanto um vírus pernicioso e travesso é flagrado tomando a sua cerveja gelada no bar da esquina. Saiba que ele não está sozinho. Segundo me garantiu um amigo espírita, está acompanhado de “espíritos zombeteiros” que, nesse exato momento, povoam as ruas quase desertas das cidades. Juntos, caçoam de nós, reles mortais, presos em nossas casas.

Se toda brincadeira tem uma dose de verdade, a blague acima serve para mostrar a forte tendência atual à individualização d´O Vírus. Da mesma maneira, podemos perceber uma certa inclinação geral à personificação da natureza. Muitos posts – remetidos por pessoas das mais diversas inclinações político-ideológicas ou até mesmo religiosas – carregam a mensagem de que Ela estaria se incumbindo de frear o curso da humanidade nessa fase em que se encontra dominada pela explosão demográfica, pela correria da vida urbana, pelo uso desenfreado da tecnologia ou, em suma, pelo que chamaremos aqui de “excesso de civilização”.

Ideias parecidas foram produzidas no século XIX, no compasso da Revolução Industrial, cuja história já conhecemos bem: os campos foram cercados; parte significativa da população mudou-se para as cidades; as máquinas começaram a funcionar, literalmente falando, a todo vapor; a poluição – do ar e sonora – começou a incomodar o cotidiano das pessoas; enfim, a pobreza urbana tornou-se um problema social. Justamente nesse contexto, produções e ações que convencionamos nomear de “românticas”, foram geradas, opondo-se ao já citado “excesso de civilização”. Será que, ao entendermos o papel desta nova “peste” como um possível limitador à nossa sanha evolutiva, estaríamos reproduzindo novamente atitudes românticas? Nunca é demais olharmos para o passado para refletirmos sobre o nosso presente. Voltemos os nossos olhos para o período de transição entre os séculos XVIII e XIX.

Nesse contexto, a civilização, como a conhecemos, passou a ser desejada por muitos. O próprio termo “civilização” chegou a ganhar um novo sentido. De acordo com Jean Starobinski, em As máscaras da civilização, a palavra, que até o século XVIII preservara seu significado jurídico de “tornar civil uma causa criminal”, começou a ser lida como sinônimo de progresso, associada ao moderno. Foi entendida como um “processo fundamental da história” que envolvia toda a humanidade, correspondendo a um valor a ser alcançado e que devia ser almejado por todos. Foi tratada como fenômeno antinômico à natureza. Esta supostamente viria primeiro, sendo pensada como estágio associado à selvageria e à barbárie. No entanto, passado o primeiro estágio de euforia, alguns indivíduos sensíveis começaram a fazer o caminho de volta e passaram, utopicamente, a desejar a vida em harmonia com a natureza. Raymond Williams mostra, em O campo e a cidade: na história e na literatura, que, na Inglaterra, na construção de grandes parques florestais (nos quais era possível a um indivíduo até se perder), buscava-se a imitação da natureza selvagem: bravia, tortuosa, sublime. Trata-se de uma evocação nostálgica de um passado perdido, construído justamente em momento histórico em que o uso da tecnologia interferia de maneira intensa no curso da natureza. Em outro nível, mas não menos importante, lembremo-nos do naturalista norte-americano Henry David Thoureau que publicou, em 1854, Walden, ou A vida nos bosques, no qual realiza reflexões críticas à civilização industrial. Produziu a obra quando se encontrava em sua casinha construída à beira do lago que dá título ao livro, situada em propriedade de Ralph Waldo Emerson, outro apologista da natureza. Os exemplos podem se multiplicar, mas, o que interessa aqui é destacar que autores de posições bastante diversas utilizaram esse mergulho na natureza para reagirem a tudo aquilo que pudesse depreciá-la. Por uma chave de interpretação sedutora, mas arriscada, Michael Löwy e Robert Sayre afirmaram, em Romantismo e política, que esse espírito de rebeldia contra a civilização – que envolvia também uma certa dose de rancor em relação ao capitalismo – era o que unificava românticos de diferentes matizes, de socialistas a liberais.

Nos textos desses românticos não faltam projeções da natureza como um ente, ou às vezes como uma força cósmica, capaz de responder às provocações humanas. A descoberta, em meados do século XVIII, das ruínas das cidades antigas devastadas pelas lavas do Vesúvio em 76 d.C., despertou a imaginação utópica de muitos viajantes românticos que passaram a visitar o local a partir de então. Os exemplos disso não são tão remotos. Nísia Floresta, autora brasileira do século XIX – relativamente conhecida entre nós graças à celebração de sua figura por grupos feministas da atualidade -, escreveu as seguintes palavras após visitar as cidades devastadas pelo vulcão: sua cratera “é um abismo sempre pronto a engolir, de um momento para o outro, as modernas belezas criadas a seus pés pela mão do homem”. No livro intitulado Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia, no qual se encontram essas reflexões, ainda mencionou as ruínas de Herculano, outra das cidades vitimadas pelo Vesúvio, afirmando: “Certas naturezas são como terrenos férteis: quanto mais os sulcos do arado passam sobre eles, tanto mais abundantemente produzem. Do mesmo modo, quanto mais essas naturezas são sacudidas pela mão da desgraça, tanto mais desdobram energia para resistir aos abalos molestos”. Ela estava entre os que destacavam as desarmonias entre natureza e civilização. Em sua leitura – romântica – a natureza, como que dotada de vontade própria, podia “responder” veementemente às intervenções humanas.

Muitos textos sobre a pandemia, que circulam hoje, de pessoas de diferentes grupos e formas de pensar, voltam a nos remeter à noção do “excesso de civilização”. O contexto é outro, claro, e não devemos nos deixar seduzir pelos anacronismos. Mesmo assim, é interessante observar como somos amplamente levados a pensar nesta hecatombe do presente como um ato voluntarista da própria natureza (ou de Deus, para alguns), para corrigir o curso das ações humanas.

Ao atribuirmos à natureza uma personalidade, acabamos também pensando no vírus como um ente – um ente que, entre outras coisas, se apropria da nossa vida social e bebe a nossa cerveja gelada no bar da esquina.

 

Referências bibliográficas

FLORESTA, Nísia. Trois ans en Italie suivis d’un voyage en Grèce. Paris: E. Dentu, 1864. (edição traduzida: FLORESTA, Nísia. Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia. Natal: EDUFRN, 1998).

LÖWY, Michael e SAYRE, Robert. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.