Três viradas históricas: 1517, 1789, 1917 – texto de Modesto Florenzano

O texto a seguir foi escrito por Modesto Florenzano para a Aula Magna do Programa de Pós-Graduação em História Social, no início de 2017.

Modesto, hoje aposentado, foi membro do Departamento de História por três décadas e deixou marca decisiva na área de História Moderna. Pesquisador e leitor incansável, professor excelente, autor de textos e livros fundamentais, pessoa admirável, sempre disposto a apoiar e a ajudar estudantes e colegas.

Para nós, é uma honra inaugurar o blog da Revista de História da USP com esse excelente e provocador convite à reflexão.

Agradecemos imensamente a Modesto pela autorização para a publicação do texto e convidamos você, leitor, a acompanhar o percurso de quatro séculos que ele propõe.

A Comissão Editorial

Três viradas históricas revolucionárias: 1517, 1789, 1917.

A vírgula, a bomba atômica e um calafrio na espinha

Modesto Florenzano 

Acreditei durante muito tempo que, um dia, acabaria por encontrar a chave do enigma. Estou condenado a morrer sem ter compreendido grande coisa de mim mesmo — nem do mundo… Um crente responderia: “Mas é tão simples!…”

Não para mim!

Roger Martin du Gard. “Epílogo”, Os Thibault, 1940.

É preciso uma legenda para esse título enigmático. Um historiador disse, em meados do século passado, que na construção e/ou interpretação de um texto, a vírgula é mais importante do que a bomba atômica; metaforicamente pode-se dizer que nas três Revoluções de que vamos tratar (a da Reforma religiosa, a Francesa e a Russa), a espécie de energia “atômica” que todas elas liberaram somente foi possível porque antes, no curso do século XV, nasceu a filologia (e com ela a importância da vírgula) e, em dado momento da primeira revolução (1517), e da última (1917), dois protagonistas sentiram, diante de Lutero e de Lênin, um calafrio na espinha.

Dois esclarecimentos preliminares: um, de caráter metodológico – essa não é uma aula inaugural ideal para um curso de pós-graduação[1], porque o que se apresenta aqui não é o resumo de uma pesquisa específica em fontes inéditas, em curso ou já concluída, como seria o ideal nesta oportunidade; é, antes, o sumo de longa e continuada reflexão sobre história moderna. Espero, no entanto, ter conseguido de alguma maneira superar essa limitação porque apresento aqui também uma hipótese: a de que a Revolução Russa tem mais semelhança com a Reforma, e vice-versa, do que com a Revolução Francesa, com a qual é mais comumente associada e como de resto pensavam os próprios protagonistas de 1917; que, portanto, uma exploração das várias analogias entre 1517 e 1917 pode iluminar mais e melhor não só a natureza e o caráter das duas, mas o que é mais importante, a natureza e o caráter da própria modernidade como um todo. O outro esclarecimento é de caráter moral: os sujeitos históricos de que aqui se falará, foram ou souberam ser – goste-se deles ou não e para o bem ou para o mal – maiores do que suas circunstâncias.

*

Como resistir no presente momento (2017) – em que se assiste ao transcurso do primeiro centenário da Revolução Russa (1917), dos quinhentos anos da Reforma Protestante (1517) e, a meio caminho de ambas, dos quase dois séculos e meio da Revolução Francesa (1789) – à tentação de aproximar e comparar essas três grandes Revoluções da modernidade, que incidiram de maneira inaudita e com consequências infindáveis, que se fazem sentir até hoje, nos âmbitos mais decisivos da vida humana, o religioso, o político e o (econômico) social?

Como resistir – particularmente para quem lecionou história moderna por mais de trinta anos – se, e para começar, levarmos em consideração duas surpreendentes afirmações provenientes da China atual (dos primeiros anos da década passada). A de um membro da Academia Chinesa de Ciências Sociais: “Pediram que investigássemos as razões para a […] supremacia do Ocidente em todo o mundo […] Primeiro, pensamos que era porque vocês tinham armas mais poderosas do que nós. Então pensamos que era porque vocês tinham o melhor sistema político. Depois focamos em seu sistema econômico. Mas nos últimos 20 anos, percebemos que o cerne de sua cultura é sua religião: o cristianismo. É por isso que o Ocidente é tão poderoso. A base moral cristã da vida social e cultural foi o que tornou possível o surgimento do capitalismo e então a transição bem-sucedida para a política democrática. Não temos dúvida quanto a isso”. E a de Jiang Zemin, presidente da República e líder máximo do Partido Comunista Chinês, prestes a deixar as duas funções, em reunião com seus altos dirigentes, “se pudesse emitir um decreto que ele sabia que seria obedecido em toda parte, seria ‘tornar o cristianismo a religião oficial da China’”.[2]

Um parêntese: acrescente-se a essas afirmações as que escreveu o consagrado historiador marxista inglês E. J. Hobsbawm, em dois de seus livros: “Consta que um ministro chinês não identificado teria dito que a economia seria ainda mais dinâmica se todos os chineses fossem evangélicos…”. “Em suma, estamos continuando o antigo debate, inaugurado por Marx e desenvolvido por Max Weber, da influência de determinadas religiões e ideologias no desenvolvimento econômico”.[3] Torna-se evidente que também entre dirigentes e pensadores comunistas e/ou marxistas, houve o reconhecimento, ainda que não gritado e propagandeado, como sucede entre conservadores e liberais, de que, dado o curso histórico do último meio século, é Weber e não Marx quem está vencendo o debate/polêmica sobre qual deles formulou a teoria mais apropriada para explicar o capitalismo, a causa causans de seu aparecimento na história e o motor de seu desenvolvimento.

Essas afirmações são tanto mais surpreendentes se lembrarmos que Partidos Comunistas são radicalmente ateus. Se não é fácil explicar o elogio ao cristianismo por parte de Jiang Zemin (supondo, naturalmente, que a sua declaração tenha sido realmente proferida), não é difícil compreender o seguinte elogio aos calvinistas ingleses do século XVII, tecido por Trotsky, que foi, juntamente com Lenin, o principal protagonista da Revolução de Outubro de 1917. Com efeito, Trotsky, num texto escrito em 1925 e intitulado Para onde vai a Grã-Bretanha, afirmou: “O calvinismo, com a sua doutrina da predestinação moldada em aço, era uma forma mística de abordagem da natureza causal do processo histórico. A burguesia ascendente sentia que as leis da história estavam do seu lado, e essa consciência tomou a forma da doutrina da predestinação. A rejeição calvinista da liberdade da vontade não paralisava de forma alguma a energia revolucionária dos Independentes [do exército liderado por Cromwell]; pelo contrário, ela constituía o seu poderoso suporte. Os Independentes se sentiam como tendo sido eles próprios chamados a realizar uma grande tarefa histórica. Temos todo o direito de estabelecer uma analogia entre a doutrina da predestinação na revolução puritana e o papel do marxismo na revolução proletária. Nos dois casos, os grandes esforços investidos não se baseiam no capricho subjetivo, mas na lei de aço, causal, misticamente deformada, num caso, cientificamente fundada, no outro” (ênfases acrescentadas).[4]

Assim, considerando as citações acima e mais as que serão apresentadas abaixo, aproximar da Revolução Russa de 1917 a Reforma religiosa, iniciada em 1517, passando, natural e obviamente, pela Revolução Francesa de 1789, não constitui, como poderia parecer à primeira vista, um paralelo arbitrário e sem sentido. Mesmo se não se é especialista em nenhum desses três grandes mo(vi)mentos que marcaram, respectivamente, o início, o meio, e o fim da modernidade; antes que essa modernidade, de “sólida”, digamos assim, se tornasse líquida, como passou a ser conhecida, graças à feliz definição de Z. Bauman – como não ver 1917 saindo de 1789 e este de 1517, como ocorre com aquelas típicas bonecas russas embutidas umas nas outras?

Mas, sendo-se ou não especialista, faz-se necessário, para quem se propõe refletir sobre tais acontecimentos, ter alguma imaginação histórica, ter uma curiosidade (des)interessada pelo passado e, por último e não menos importante, ter preocupação com o presente, (com)partilhar dos dramas do mundo, sofrer o “dói-me a cabeça e o universo”, como no estupendo verso de Fernando Pessoa, ou, sofrer da weltkopfschmerz, da dor de cabeça do mundo, como diziam os românticos alemães do Oitocentos.

Esse parece ter sido o caso de Abdel-Ghani, porta-voz dos imãs da Universidade egípcia de Al-Azhar (a mais antiga instituição de ensino do Islã), ao declarar, em 2015: “O Islã vive uma crise. Vivemos um conflito entre texto e intelecto […] O salafismo e o wahabismo trazem visões fundamentalistas e, muitas vezes, errôneas do Islã, porque ignoram estudos para o melhor entendimento do significado das escrituras. Mesmo para os que têm o árabe como primeira língua é difícil compreender textualmente as escrituras ancestrais, porque o idioma se modificou” (ênfase acrescentada)[5].

O “conflito entre texto e intelecto” de que fala Abdel-Ghani, remete ao contexto histórico que tornou possível ao Ocidente superá-lo, pois foi graças à revolução intelectual que se iniciou na Itália, a partir do século XV, por obra do humanismo renascentista – e que se desdobra e aprofunda pela Europa com a Reforma religiosa do século XVI – que o Ocidente conseguiu desacorrentar a mente da rigidez, e do aprisionamento plurissecular, em que se encontrava. Porque o humanismo, nas palavras de um historiador, foi “uma revolução intelectual”; e nas palavras de outro, “a primeira grande revolução gnosiológica do segundo milênio”. [6]

Pode-se assim definir a modernidade nas suas várias esferas e dimensões básicas: o homem como indivíduo autônomo, irredutível à sociedade e com sua subjetividade levada às últimas consequências; a sociedade como contrato e estratificada em classes onde impera, ou deveria imperar, a igualdade jurídica; o Estado como poder limitado e/ou constitucional, também autônomo, separado da – e em oposição – à sociedade civil; a economia capitalista, como sistema de produção baseado no livre mercado, no trabalho assalariado e na propriedade privada; e, no plano do pensamento e da visão de mundo, a presença, mais ou menos forte e difundida, da ment(alidad)e racional e desencantada.[7]

Nas duas citações dos autores chineses acima apresentadas, não está dito, mas está suposto, que o cristianismo evocado e enaltecido é o cristianismo Ocidental, posterior à Reforma religiosa do século XVI. Por sua vez, humanismo e Reforma saíram de duas cidadelas, na bela formulação do grande sociólogo norte-americano C. Wright Mills: “Se se perguntar a que é que o intelectual [moderno] pertence, deve responder-se que pertence antes de mais a essa minoria que realizou o grande discurso da mente racional, o grande discurso que tem prosseguido – por vezes com intervalos – desde que a sociedade ocidental se iniciou há cerca de dois mil anos nas pequenas comunidades de Atenas e de Jerusalém”.[8]

Já é hora de esclarecer que esta é uma tentativa de história comparada entre as três grandes Revoluções do Ocidente, mas de uma histoire vu d’en haut, vista de cima, vista pelas ações e representações dessa minoria de intelectuais mesmo quando, como é o caso de vários dos aqui tratados, eles se notabilizaram também, e/ou mais ainda, como atores políticos e estadistas. A abordagem e o(s) sujeito(s) perseguidos são estritamente os da história intelectual. Isso quer dizer que tanto o material empírico quanto a interpretação aqui apresentadas, ou seja, a história e a historiografia, não só se (con)fundem, como – e sobretudo – se restringem quase sempre à (cons)ciência histórica de protagonistas (e testemunhos) e, a posteriori, de determinados historiadores. Frequentemente esses três papéis estão presentes num mesmo a(u)tor  como, para dar um exemplo conspícuo, foi o caso de Trotsky, o qual, nas palavras de seu melhor biógrafo, “estava possuído de um sexto sentido, por assim dizer, um sentido intuitivo da História, que o destacava entre os pensadores políticos de sua geração”.[9]

**

Que a Revolução Russa de 1917, foi tributária da Revolução Francesa de 1789, sabiam-no todos os seus principais protagonistas, a começar por Lenin, que, em texto de 1904, afirma: “o jacobino ligado indissoluvelmente à organização do proletariado, consciente dos seus interesses de classe, é exatamente o socialdemocrata [leia-se o bolchevique e/ou o comunista] revolucionário”. Lênin via-se a si mesmo e ao seu partido como se fosse(m) neojacobino(s); unindo deliberadamente a experiência histórica jacobina com a teoria marxista para melhor poder agir e dirigir os acontecimentos. Foi tão grande e tangível essa presença da Revolução Francesa, particularmente do jacobinismo, no comportamento dos revolucionários russos que esse é, talvez, um dos poucos consensos entre os historiadores sobre os múltiplos aspectos que compõem a Revolução Russa de 1917.

Mas aqui vejo-me obrigado a abrir um segundo e mais longo parêntese: Lênin (1870-1924), bem como todos os demais revolucionários russos de seu tempo, havia sido, por sua vez, precedido por duas gerações de revolucionários, responsáveis por introduzir na Rússia, o tema/problema do socialismo/revolução, que, uma vez posto em circulação, não mais saiu da agenda e galvanizou, de maneira sem precedentes, a maioria dos intelectuais e estudantes universitários do imenso país. Dois autores não podem deixar de ser lembrados aqui, entre todos os que formaram a intelligentzia russa do século XIX, comprometida até a medula com o ideário de uma Revolução socialista, que iria regenerar os homens e as nações, a começar pela Rússia: Alexander Herzen (1812-1870) e Nikolai Tchernichevski (1828-1889). E isto seja pela importância crucial de ambos na formação de uma consciência revolucionária autenticamente russa, seja pelo profundo conhecimento crítico que eles possuíam com relação não apenas à grande Revolução Francesa de 1789, mas também às de 1830 e 1848.

Herzen, que viveu exilado na Europa, escreveu em 1854: “o culto da Revolução Francesa é a primeira religião de um jovem russo; e quem de nós não possuiu, às escondidas, os retratos de Robespierre e de Danton?”.[10]

Sobre ele, o historiador inglês E. H. Carr sentencia: “Se fosse preciso definir numa só frase o lugar de Herzen na história da Revolução russa, poderíamos chamá-lo ‘o primeiro narodnik[populista]’. Os narodniks formaram a primeira geração de ativos revolucionários russos que, antes [do pensamento] de Marx lograr algum impacto na Rússia, proclamaram as potencialidades revolucionárias do oprimido campesinato russo e buscaram a salvação no movimento que chegou a ser conhecido como ‘ida ao povo’…”; esse mesmo historiador também cita, entre tantas outras, as seguintes passagens proféticas de Herzen: “a última palavra da civilização é revolução”; e “penso que há uma certa base de verdade no medo que o governo russo está começando a ter do comunismo: o comunismo é a autocracia russa de ponta cabeça”.[11]

Tchernichevski, que viveu preso de 1864 a 1883, em regime de trabalho forçado na Sibéria, referiu-se não poucas vezes à Revolução Francesa em seus escritos. Num deles, de 1859, lê-se: “A Revolução Francesa não conseguiu desenraizar por completo o Antigo Regime: este ressuscitou sob Napoleão e reforçou-se durante a Restauração…” Mas Tchernichevski deve aqui ser lembrado pelo romance Que Fazer, publicado em 1864, no mesmo ano em que tem início a sua longa vida de prisioneiro. Recorro novamente ao historiador Carr, em outro de seus muitos livros sobre Revolução Russa, para mostrar a importância de Tchernichevski para os revolucionários russos em geral, e para Lenin em particular (que, como se sabe, intitulou Que Fazer, um seu escrito de 1902). “A nota dominante em todos os seus [de Tchernicheski] escritos, afirma Carr, e aquilo que as sucessivas gerações de revolucionários nele encontraram acima de qualquer outra coisa, foi a fé no socialismo, a fé no progresso e a fé na razão. […] Foi Tchernichevski, mais do que qualquer outro, que modelou as atitudes morais de duas gerações de revolucionários russos. Lênin o definiu como ‘um grande socialista russo’ (se bem que ainda um ‘socialista utópico’), mas indubitavelmente o considerava um dos precursores do bolchevismo. O revolucionário ideal de Lênin deveria viver como viviam os heróis e as heroínas de Tchernichevski”.[12] (Fim do parêntese).

Se, em 1917, os próprios revolucionários russos foram conscientes de serem tributários dos revolucionários franceses de 1789 (e também dos de 1848 e de 1870); no caso dos protagonistas da primeira Revolução Francesa, estes foram curiosamente antecipados por um político e pensador britânico, o irlandês Edmund Burke (1729-1797), o primeiro a associar a Revolução Francesa com a Reforma. Com efeito, exatamente dois anos depois de iniciada a Revolução, em texto de 1791, ele escrevia: “A atual Revolução na França me parece ter um outro caráter e qualidade; e manter pouca semelhança e analogia com qualquer outra que ocorreu na Europa com base em princípios meramente políticos. Ela é uma revolução de doutrina e de dogma teórico. Tem muito mais semelhança com aquelas mudanças que foram feitas em bases religiosas, nas quais o espírito de proselitismo tem um papel essencial. A última revolução de doutrina e teoria que ocorreu na Europa, foi a Reforma… O princípio da Reforma era tal que, por sua essência, não podia ser local ou confinado ao país onde se originara”.[13]

Dois anos depois, em 1793, foi a vez do marquês de Condorcet associar a Revolução (que ele estava protagonizando) com a Reforma; e, de um ponto de vista favorável à mesma, escreve: “[com a Reforma] os homens, após ter submetido os prejuízos religiosos ao exame da razão, estenderiam esse exame aos prejuízos políticos”; a seguir, em 1797,  foi a vez do contrarrevolucionário Joseph de Maistre,  afirmar: “Lutero aparece; Calvino o segue… e em nossos dias enfim a Revolução Francesa, que parte da mesma fonte”; um ano depois, este mesmo autor sentenciava: “o protestantismo é positivamente, e ao pé da letra, o sans-culottismo da religião”; e ainda, “Peço aos observadores que reflitam sobre a afinidade verdadeiramente surpreendente que acaba de se manifestar aos olhos do universo entre o protestantismo e o jacobinismo”.[14]

Quanto aos protagonistas da Reforma, não é preciso dizer que, por terem sido eles os primeiros revolucionários da modernidade, não poderiam ter tido, como é óbvio, nenhuma revolução passada na qual pudessem se espelhar. Contudo, isto não significa dizer que não dispusessem de exemplos, de paradigma(s) localizados no passado para inspirar sua ação no presente – pois, como se sabe de há muito, sem ide(olog)ias não há revolução – mesmo que, como no caso da Reforma religiosa, essas ideias estivessem voltadas para o passado e não para o futuro, e que  não tenha sido a intenção original dos seus protagonistas fazer uma revolução. Às três revoluções e seus respectivos líderes podemos aplicar a bela fórmula de Raymond Aron: “obra de atores conscientes de seus atos e inconscientes de seu destino”.[15]

*** 

Como se pode ver, a estratégia, e fio condutor, para encadear a Revolução Russa à Revolução Francesa e ambas à Reforma Protestante (para assim explorar analogias e possíveis semelhanças e contrastes históricos entre as três), consiste em deixar falar os próprios protagonistas e testemunhas. E isto sobretudo, como se verá em continuação, no que concerne àquela que é, talvez, a questão mais crucial e grave, avassaladoramente presente nas três revoluções, qual seja a da energia prodigiosa, quase sobre-humana, ostentada por muitos dos protagonistas; energia alimentada de convicções e de entusiasmo, e acompanhada de fanatismo e de violência (mesmo quando apenas verbal).

Nessa questão, também coube a Burke o pioneirismo da interpretação. Em um texto de 1793 escreveu: “A revolução jacobina é levada a cabo por homens sem posição, sem consideração, de mentes desenfreadas e selvagens, cheios de leviandade, arrogância e presunção, sem moral, sem probidade e sem prudência. O que têm eles então para suprir seus inúmeros defeitos e para fazê-los terríveis até para as mentes mais firmes? Uma coisa, e apenas uma coisa – mas ela vale por mil – eles têm energia”. E ainda: “Como seria possível pensar que a mais completa e formidável revolução em um grande país como a França foi feita por homens de letras… Quem poderia ter imaginado que o ateísmo poderia produzir um dos mais violentos princípios operativos de fanatismo?”[16] Quem também logo rendeu homenagem à energia dos jacobinos foi o, já citado, contrarrevolucionário  Maistre, ao afirmar que “o gênio infernal de Robespierre pôde operar o prodígio”; que “…a Revolução somente teve êxito por causa da duração e da energia do espírito revolucionário”; e, ainda, que “não é demais repetir que não são os homens que conduzem a revolução, é a revolução que se serve dos homens”.[17]

Mais de meio século depois da Revolução de 1789, Alexis de Tocqueville (1805-1859), juntando experiência (foi testemunha e ator nas jornadas revolucionárias de 1848) e conhecimento (foi leitor atento de Burke e de Maistre, entre muitos outros), assim caracterizou a figura do revolucionário típico: “Mas na Revolução Francesa… surgiram revolucionários de uma espécie desconhecida, que levaram a audácia até a loucura, que nenhuma novidade poderia surpreender e nenhum escrúpulo moderar, e que nunca hesitaram na hora de executar um intento. E não se deve pensar que estes novos seres foram a criação isolada e efêmera de um momento, destinada a sumir com eles; formaram desde então uma raça que se perpetuou e se expandiu em todas as partes civilizadas da terra e que por toda parte preservou a mesma fisionomia, as mesmas paixões, o mesmo caráter. Encontramos esta raça no mundo quando nascemos e ainda está sob nossos olhos”.[18]  Registre-se, de passagem, que enquanto há, com relação à energia e violência revolucionária, uma certa ambiguidade na interpretação do conservador Burke e do reacionário Maistre, vale dizer, um misto de denúncia e de reconhecimento, na interpretação do liberal Tocqueville isso não ocorre.

Tocqueville, atuando na Revolução de 1848 como político, em discurso na Câmara dos Deputados, disse que “a Revolução de fevereiro deve ser cristã e democrática, mas não deve ser socialista”[19]; mas, como historiador, ao escrever suas Lembranças desses acontecimentos, confessará que “o socialismo permanecerá como o caráter essencial e a lembrança mais temível da Revolução de fevereiro”.[20]

Não deixa de ser uma curiosa ironia a coincidência de predição entre Tocqueville e Marx quanto ao que consideravam o fim próximo da propriedade privada, com o advento inevitável do socialismo por meio de uma nova revolução. Só que enquanto o segundo lutava abertamente para apressar esse futuro, que via como radioso; o primeiro, por considerá-lo sinistro e sentindo-se totalmente impotente para contê-lo, como que o escondia até mesmo de si próprio. Como poderia, para Tocqueville, esse futuro não ser socialista se: “Era inevitável que [o povo], num dia ou noutro, acabasse descobrindo que sua posição não era devida à constituição do governo, mas às leis imutáveis que constituem a própria sociedade; e assim seria natural perguntar-se se não tinha o poder e o direito de mudar também essas leis, como já havia feito com outras. E falando especificamente da propriedade, que é o fundamento de nossa ordem social, esta restou como o principal obstáculo para a igualdade entre os homens… Não seria necessário, portanto, não digo eliminar a propriedade, mas que pelo menos a ideia de eliminá-la se apresentasse ao espírito dos que dela não desfrutavam?”.[21]

****

Na exploração das analogias que se está a fazer entre as três revoluções, parte-se da consciência histórica ostentada por protagonistas e testemunhas oculares, tanto de 1789 quanto de 1917, de que as revoluções que estavam vivenciando (e ajudando a desencadear e liderar, ou a combater e, ou ainda, a somente explicar) derivavam, respectivamente,  da Reforma Religiosa e da Revolução Francesa. Ou seja, eles haviam se dado conta de que uma vez questionado e derrubado o primeiro baluarte da ordem social, o baluarte da autoridade religiosa, constituído pela Igreja romana, era inevitável e fatal que também o baluarte da autoridade política, representado pelo Estado absolutista, fosse questionado e derrubado, e depois destes dois, o mesmo iria suceder com o terceiro e último baluarte, fundado no princípio da propriedade privada e desigualdade de riqueza.

Ressalte-se que isso não significa que já na primeira dessas revoluções, a Religiosa, não tivessem sido postos em xeque a autoridade política e a ordem social, como o atestaram primeiro os movimentos anabatistas, quer os de caráter pacífico quer os de caráter violento, e a seguir, um século depois, como o atestaram os levellers (niveladores) na Revolução Inglesa; daí a razão de todos eles terem sido ferozmente reprimidos até o extermínio. Contudo, as ideias e as práticas desses movimentos radicais, que queriam revolucionar não só a religião como também o Estado e a sociedade, sobreviveram para reaparecer renovados e mais fortes na Revolução Francesa, com os jacobinos e, mais ainda, com os sans-culottes (entre os quais dizia-se haver três coisas que a Revolução não podia tolerar, “o aristocrata, o padre e o rico”). Foi essa presença incontornável da questão social na Revolução Francesa – já manifesta na própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, embora de maneira tímida e ambígua –  que explica por que 1789 só terminou verdadeiramente um século depois, com a consolidação da Terceira Republica, depois de 1870, quando, finalmente, foi possível reconciliar (ainda que de maneira parcial e em tensão permanente) os dois princípios que a haviam desencadeado, o da liberdade e o da igualdade.

Em outros termos, cada uma das três Revoluções corresponde, portanto, a uma derrubada histórica de crucial importância e significado: a do poder religioso da Igreja católica, com a Reforma religiosa de 1517; a do poder político do Estado absolutista, com a Revolução Francesa de 1789; e a do sistema econômico-social capitalista com a Revolução Russa de 1917. Cada uma dessas três derrubadas históricas revolucionárias provocou um tipo de fratura ideológica na consciência individual e coletiva europeia e mundial, bem como desencadeou guerras civis e estrangeiras mais ou menos duradouras, mas todas tremendamente mortíferas, durante as quais vizinhos tornaram-se inimigos e estranhos tornaram-se amigos. Nesse sentido, a seguinte percepção profunda de Tocqueville aplica-se igualmente bem à Reforma religiosa e à Revolução Russa: “A Revolução Francesa não teve um território próprio, mais do que isso, teve por efeito por assim dizer apagar do mapa todas as antigas fronteiras. Aproximou ou dividiu os homens a despeito das leis, das tradições, dos caracteres, da língua, transformando às vezes compatriotas em inimigos e irmãos em estranhos; ou melhor, formando acima de todas as nacionalidades, uma pátria intelectual comum da qual os homens de todas as nações podiam tornar-se cidadãos”.[22]

É por tudo isso que o que se está a chamar de as três derrubadas históricas, revelam, mutatis mutandis, notáveis semelhanças; daí o porquê das analogias entre as mesmas ter se mostrado quase uma necessidade ao pensamento dos contemporâneos (das revoluções de 1789 e de 1917) e à imaginação histórica dos pósteros. Todas as três viradas revolucionárias ocorreram em – e decorreram de – situações históricas marcadas por auges mais ou menos prolongados, tanto na esfera da cultura quanto na da economia. Esta última passava, nos três períodos, pelo que os historiadores chamam de Fase A – um trend positivo, no qual todos os fatores econômicos encontravam-se em aumento e expansão: agricultura, comércio e indústria, capital e riqueza (sob todas as suas formas), trabalho e produtividade, preços e população. Contudo, em meio a tais trends positivos, quando da criação das três situações revolucionárias, estavam em curso graves crises econômicas de caráter conjuntural, isto é, de média duração (ciclos de uma ou duas décadas), com seus sinistros cortejos de desemprego, salários em queda, preços em alta, desabastecimento e fome; crises agravadas e/ou desencadeadas por Estados em colapso financeiro e/ou em guerra (mais precisamente, em processo violento – do ponto de vista social e político-religioso – de recomposição, como na Alemanha, em colapso financeiro, como na França, e em guerra, como na Rússia). Essas agudas crises econômicas potencializaram, até tornar explosivos, os conflitos sociais que decorriam das específicas contradições sociais que caracterizavam cada uma daquelas três estruturas sociais, a alemã, a francesa e a russa – ainda predominantemente agrárias e aristocráticas, mas, ao mesmo tempo, já com setores capitalistas e burgueses mais ou menos vigorosos.

Como quer que tenha sido, o que importa destacar é que, quando da eclosão das três revoluções, todos os respectivos protagonistas já estavam com suas mentes e convicções firmadasformadas não no curso das crises, mas dos auges econômicos e culturais. Com efeito, em 1517, na Europa e na Alemanha, assistia-se, e isso desde as últimas décadas do século anterior, à máxima expansão e realização do Renascimento e do humanismo; em particular do chamado humanismo bíblico, vale dizer, do paradigma intelectual, do procedimento metodológico, que tornou possível a Lutero e a todos os demais reformadores revolucionarem a teologia de dentro do cristianismo. Em 1789, todos os grandes autores e respectivas obras que forma(ra)m a constelação iluminista, já eram conhecidas em toda a Europa e América letradas; tão hegemônico tornara-se o Iluminismo, a partir de meados daquele século, que praticamente não houve soberano e Estado que não tivessem praticado – ou tentado praticar – um programa de reformas com essa inspiração. Em 1789, havia quase meio século que a França era o centro dinâmico do iluminismo europeu, onde reinava aquilo que os próprios philosophes chamavam de esprit critique, que a tudo e a todos submetia ao escrutínio da razão; uma razão agora livre de toda transcendência, de toda vinculação com Deus e o divino, como fora o caso do racionalismo do século XVII.[23]

Em 1917, por sua vez, imperavam na Europa e em várias outras partes do mundo, de um lado, o cientificismo, fundado no avanço que as ciências estavam realizando em todos os campos (inclusive, e não menos, no das humanidades, como o da psicologia, com Freud, e o da sociologia, com Weber) e em invenções técnicas extraordinárias (como a eletricidade, o telégrafo e o automóvel, entre outras); e, de outro lado, o socialismo, com suas várias teorias e correntes, como e sobretudo a marxista, amplamente disseminadas entre intelectuais e partidos operários. Entende-se, assim, por que foram constitutivos desses três paradigmas – o humanista, o iluminista e o socialista – e sua marca mais característica e comum, uma visão otimista do homem e uma crença radiosa do futuro.

Há mais um ingrediente importante que marcou, no plano do espírito (do zeitgeist), aqueles três mo(vi)mentos. Um sentimento, amplamente compartilhado, de que (um)a reforma e/ou revolução estava por vir e, ao mesmo tempo, uma cegueira quanto ao momento de sua chegada e ao modo de sua efetivação. Em parte, talvez, essa impossibilidade de ver as coisas se devia a uma falsa segurança: no caso de 1517, em razão da naturalização do problema da Reforma da Igreja, que estava na ordem do dia há pelo menos um século. No caso de 1789, porque, como sagazmente observou o historiador Michelet sobre o aparecimento da Revolução – ela era esperada, avistava-se ao longe, mas quando finalmente chega, a todos surpreende, pois, como o Monte Branco, o mais alto dos Alpes, era visível de longe, mas não de perto.

No caso de 1917, ou melhor de 1914 (dado que foi o inicio da guerra que tornou possível a revolução russa no momento em que aconteceu), o inédito e longo período de paz vivido pelo continente europeu (desde o fim da Guerra da Criméia em 1856, excetuadas obviamente as breves guerras envolvendo as unificações italiana e alemã) tornou possível que, nas palavras de Stephen Zweig, “justamente o sentimento que mais amávamos nos trai[sse]: nosso otimismo incomum conjunto… Mas essa fé crédula em que a razão à última hora poderia impedir a loucura foi, ao mesmo tempo, nossa culpa… Confiávamos em Jaurès, na Internacional Socialista, acreditávamos que os ferroviários prefeririam explodir os trilhos a deixar seus camaradas irem ao front como gado de abate… Nosso idealismo comum, nosso otimismo baseado no progresso, fizeram-nos ignorar e desprezar o perigo geral”.[24]

Enquanto isso, já desde os primeiros anos do século XX, os revolucionários russos do partido socialdemocrata, no mesmo momento em que começavam a se dividir em mencheviques e bolcheviques, também começaram a se considerar como os representantes da verdadeira alma do marxismo revolucionário e a vanguarda do movimento operário internacional. Se, portanto, desde o início da Revolução de 1917, já existiam na Rússia partidos políticos (e líderes) revolucionários, preparados para tomar o poder e monopolizá-lo, como sucedeu com os bolcheviques; nada de semelhante ocorreu, como é mais do que sabido, nem no início da Revolução Francesa nem no da Reforma religiosa.

Escusado dizer que se os historiadores conseguem olhar para os dois níveis da realidade histórica, o estrutural (em crescimento econômico) e o conjuntural (em recessão), os contemporâneos – embora formados, em termos de consciência e visão de mundo, no primeiro nível – somente enxergavam o último nível, e com muita ansiedade para dizer o mínimo. Foi essa combinação contraditória entre realidade material e mental que potencializou ao máximo, na consciência dos protagonistas (não poucos dos quais com apurado conhecimento de História), a frustação e rancor com o presente e a esperança e o horizonte de expectativa com o futuro.

*****

Retornando ao centro da questão da energia revolucionária, tome-se a Reforma protestante, a primeira manifestação desse fenômeno na história moderna e, talvez, em seu estado mais candente, difuso e prolongado. E lembrando, na citação de Trotsky, da afirmação de que os puritanos ingleses “se sentiam como tendo sido eles próprios chamados a realizar uma grande tarefa histórica”. O que é verdade, porque como afirmou um protagonista, Thomas Case, em sermão de 1641, na Câmara dos Comuns, “A Reforma deve ser universal… Reforma de todos os lugares, de todas as pessoas e profissões… Todas as plantas que meu Pai celestial não plantou serão arrancadas”.[25]

Nesse mesmo ano de 1641, outro pregador, Stephen Marshall, foi ainda mais longe ao  afirmar:  “vocês têm uma grande obra a realizar, implantar um novo paraíso e uma nova terra entre nós, e grandes obras tem grandes inimigos”; e um ano depois, em 1642, esse mesmo pregador pronunciava um sermão diante da Câmara dos Comuns intitulado a Maldição de Meroz, em que assim interpretava o texto bíblico: “Maldito é todo aquele que retém sua mão para não derramar sangue”,  incitando os ouvintes “a ir e manchar as mãos com o sangue dos homens, a derramar e a fazer correr o sangue de mulheres e das crianças como água em todas as ruas”; e afirmando ainda que  “é um homem abençoado aquele que pega as crianças e as arremessa contra as pedras”.[26] É o caso de acrescentar que os puritanos ingleses estavam tão imbuídos da crença de que a sua era uma missão divina que um de seus mais notáveis representantes, o grande poeta e republicano John Milton, teria dito certa vez que Deus não tomava nenhuma decisão sem antes anunciá-la aos ingleses; e o seu líder supremo, Oliver Cromwell, que ele não tomava nenhuma decisão sem antes se consultar com Deus!

É verdade também que todas essas citações pertencem à Revolução Inglesa de 1640-1660, que corresponde já ao período final dos conflitos religiosos entre – e dentre – Estados (e que se encerraram com a Guerra dos Trinta Anos 1618-1648), que tanto ensanguentaram toda a Europa por cento e trinta anos, a começar de 1517. Foram tantos, e são tão conhecidos, esses episódios de incrível violência e crueldade que não há necessidade aqui de lembrar de nenhum outro em particular. Seja como for, encontramos já nos primeiros grandes reformadores, todos eles igualmente convencidos de terem sido comissionados por Deus para a realização dessa “santa violência na execução de todos os deveres”, como a chamou L. Stone, o historiador ao qual acabo de recorrer.

A começar por Lutero, que, em não poucos de seus pronunciamentos e sermões, recorre a uma linguagem de ódio e violência espantosas. Lutero, definido por Stefan Zweig como “talvez o mais fanático, obstinado, indócil e beligerante de todos os gênios que a terra conheceu”.[27] Um contemporâneo de Lutero – também reformador e também chamado Martin, mas de sobrenome Bucer –  confessou ao se referir a ele: “Sinto um calafrio quase mortal quando penso na raiva que ferve nesse homem assim que se vê diante de um adversário”.[28] E com efeito, quando surgiram diante de Lutero adversários como Erasmo, no plano individual, e como o campesinato alemão, no plano coletivo, sua fúria não conheceu limites.

Com De Servo Arbítrio, de 1525, Lutero responde com a máxima indignação e violência às críticas que Erasmo lhe fizera um ano antes em De Libero Arbítrio; ataca este ultimo por se limitar a “assistir como espectador à nossa tragédia”, ao mesmo tempo que reconhece estar (ele Lutero) disposto “não só a semear a discórdia no mundo senão mesmo a deixá-lo em ruínas”; estar disposto a não acreditar “que possamos impor nossa causa sem tumulto, agitação e levantes. Não se pode transformar a espada em pluma nem a guerra em paz. A palavra de Deus é guerra, é agitação, é agonia, é ira”; e, em recusa ao chamado de Erasmo para o acordo e a unidade, afirma: “Deixa tuas queixas e lamentos. Contra esta febre não há medicina. Esta guerra foi nosso Senhor quem a instigou e quem fará que não cesse até que tenha reduzido a nada todos os inimigos de seu verbo”.[29] Como poderia Erasmo, sempre nas palavras de Zweig, “esperar uma atitude transigente [de Lutero] da cabeça mais inflexível do século, de um homem que, no que concerne sua fé e suas convicções, não renunciaria a uma só letra ou a uma só virgula nem mesmo na fogueira… antes preferiria buscar sua ruína ou a do mundo inteiro do que se desviar uma polegada do mais breve e insignificante parágrafo de sua doutrina”.

Terceiro parêntese: como não associar, a esta altura, algumas destas formulações apocalípticas, que, em nome do que seria a tarefa e o cumprimento da verdadeira religião, pregavam a aniquilação de tudo e de todos que a ela se opusessem; de associá-las, dizíamos, com algumas formulações, igualmente de espírito apocalíptico, durante a Revolução Russa de 1917. Por exemplo, com esta passagem do Abc do comunismo, de 1919 (escrito por Bukharin e Preobrajenski): “no decorrer de alguns decênios vai haver um mundo totalmente novo, com pessoas e hábitos novos”; ou, esta outra, atribuída a Máximo Gorki, a qual, de alguma maneira, era compartilhada pelos revolucionários russos de todas as tendências: “Conduziremos a humanidade à felicidade, mesmo que seja à força”.[30] De Gorki, Lênin disse com ironia que “tem um talento artístico prodigioso, mas por qual motivo deve se intrometer na política?” Gorki, contudo, em seu jornal Nova Vida escreveu, lucidamente, que “Seja Lênin, seja Trotsky, não fazem a mínima ideia do que significam a liberdade e os direitos do homem. Estão já intoxicados pelo maléfico veneno do poder, como se depreende da conduta vergonhosa decidida nos confrontos das liberdades democráticas, desde a liberdade de palavra até a liberdade pessoal”.[31]

Se Lutero demorou mais de um ano para responder ao escrito de Erasmo, foi porque esteve (pre)ocupado com a revolta camponesa que assolava grande parte da Alemanha naquele momento e contra a qual ele fez tudo o que esteve ao seu alcance para a aniquilar sem nenhuma piedade, com uma brutalidade e crueldade fora do comum. “Sendo ele mesmo um revolucionário, se vê obrigado a tomar partido contra a revolução camponesa alemã, e quando Lutero toma partido, só pode fazê-lo em termos extremos da maneira mais sectária e feroz. De todos os seus escritos, este contra os camponeses é um de seus mais violentos”; depois que a rebelião terminou brutalmente aniquilada, Lutero reconheceu “ter as mãos manchadas de sangue”, do sangue de Thomas Münzer e do sangue dos camponeses.[32] Não somente essa rebelião camponesa, mas todas as demais que se lhe seguem, dentro e fora da Alemanha, até meados da década de 1530, foram reprimidas com incrível brutalidade por todas as igrejas, as Reformadas e a Católica, e por todos os governantes.

Vista de uma perspectiva histórica marxista, a revolução desencadeada por  Lutero acabou sendo um fracasso, uma vez que aquela que estava destinada a ser uma primeira revolução burguesa não aconteceu; e vista da perspectiva histórica do protestantismo como um todo, o luteranismo também fracassou ao se revelar incapaz de transcender o mundo alemão e escandinavo no qual acabou por se enraizar, e mesmo assim parcialmente; ou seja, não fosse Calvino e o calvinismo, o protestantismo teria ficado reduzido e confinado a uma área muito particular da Europa central e do norte. Contudo, visto de uma perspectiva ao mesmo tempo mais nuançada e ampla, Lutero foi um êxito, pois, e como já se disse, se a Reforma não foi apenas obra de um só homem, sem Lutero não teria havido Reforma; isto por um lado, por outro, porque ele conseguiu, em meio a todo o drama histórico alemão, permanecer, nas palavras de um historiador, “fiel ao ‘seu’ Evangelho, recusando-se a confundir a liberdade cristã seja com a liberdade nacional, seja com a liberdade política, seja ainda, e enfim, com o livre arbítrio. Sem temer perder aliados que lhe poderiam ter sido preciosos, Lutero, com tal tríplice recusa, rompeu com o nacionalismo dos nobres, com o ‘socialismo’ dos camponeses e com o humanismo cristão”.[33]

Mas, poder-se-ia perguntar, Lutero não teria traído sua doutrina ao submeter sua nova igreja ao controle dos príncipes alemães que a ela haviam aderido? Não, porque se a essência de sua teologia obrigou o cristão à obediência indiscutível para com a autoridade temporal, também levou, ao mesmo tempo, na brilhante formulação do romancista Thomas Mann, “à perfeição a liberdade e a soberania do homem alemão, tornando-as internas e assim subtraídas para sempre da esfera das contendas políticas”.[34] Em outros termos, como observou um estudioso, era parte do programa teológico de Lutero despolitizar a religião, assim como havia sido parte do programa político de Maquiavel desteologizar a política.[35]

O programa de Calvino, por sua vez, consistiu em elaborar um sistema para restaurar a reputação da ordem política, mas fazendo o poder político servir ao eclesiástico, vale dizer, aos objetivos da Igreja reformada. Será esta Igreja e não a cidade que passará a ser o meio vital para o aperfeiçoamento humano, o símbolo do destino humano.[36]  Calvino, como disse um seu discípulo, fez de Genebra “a mais perfeita escola de Cristo que jamais teve lugar na terra desde o tempo dos apóstolos”; e, como disseram posterior e respectivamente dois historiadores, ele fez dessa cidade o centro de “[um]a internacional calvinista” e “conseguiu moldar um novo tipo de homem, o reformado”.[37]

Deste reformador deve ser dito que era tão forte sua força de vontade, tão austero seu caráter, tão rigorosa sua disciplina, que metia medo até mesmo em seus amigos; daí porque dizia-se em Genebra ser preferível ir ao inferno com Theodore Beza (um de seus discípulos tido como um pouco menos inflexível) do que ao paraíso com ele, Calvino. Não só seu governo, em Genebra, mas também seu ensinamento e sua doutrina, foram chamados de desumanos por mais de um estudioso.[38] Contudo, o calvinismo, tal como foi poeticamente expresso, um século depois, pelo puritano e republicano John Milton em seu O Paraíso Perdido (e como foi assimilado e praticado por milhares de seguidores), eleva o homem a uma grandeza e bem-aventurança extraordinárias. Foi Weber quem, sabiamente, lembrou e citou, em seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, os versos finais de Milton que faz o arcanjo Gabriel dizer a Adão, depois de decretada sua expulsão: “não estarás perdido ao deixar esse paraíso, pois possuirás um paraíso dentro de ti, uma felicidade muito maior”; e imaginando Adão e Eva nesse momento fatal o poeta conclui: “Olhando para trás, para a parte oriental do paraíso, onde até há pouco viviam felizes… Verteram algumas lacrimas, enxugando-as, porém, rapidamente: tinham o mundo todo pela frente, a escolha de um lugar para ficar, e a Providência para os guiar..”.

Em A religião e o surgimento do capitalismo, o historiador R. H. Tawney assim caracterizou o calvinismo: “Era inevitável que o sistema de Calvino fosse mais tirânico que a Igreja medieval, assim como o Clube Jacobino o era em relação ao ancien régime… Calvino sacrificou a liberdade não com relutância, mas com entusiasmo. Pois a Igreja calvinista era um exército marchando de volta à Canaã…  Na guerra, o expediente clássico é a ditadura. A ditadura do sacerdócio parecia tão inevitável ao calvinista convicto quanto o Comitê de Salvação Pública aos homens de 1793, ou a ditadura do proletariado ao bolchevique entusiasmado”. E prossegue este historiador, cujo livro é de 1927 e apresenta mais de uma analogia entre as nossas três revoluções: “O que de melhor pode ser dito sobre a teoria e a prática sociais do primitivo calvinismo é que elas eram constantes. A maior parte das tiranias têm-se contentado em atormentar os pobres. O calvinismo sentia pouca piedade para com a pobreza; mas desconfiava da riqueza… e, no primeiro rubor de sua juvenil austeridade, esmerou-se em tornar insuportável a vida para o rico”.[39]

A ser verdadeira a interpretação de Tawney, e tudo indica que é, está-se aqui diante de um paradoxo, uma situação absolutamente única nos anais da história, qual seja, a de um sistema político ter, antes da Revolução Francesa, tornado “insuportável a vida para o rico”, mais ainda, de terem sido justamente os supostos portadores do espírito do capitalismo a fazer tal coisa!

Não se pode deixar de mencionar também, ainda que en passant, a figura de outro reformador gigante, mas este do lado do catolicismo, Inácio de Loyola (a quem, bem como a Lutero e a Calvino, também é possível aplicar as palavras de Engels sobre os grandes protagonistas dos inícios da época moderna: “um tempo que precisava de gigantes e engendrou gigantes – gigantes em força de pensamento, paixão e caráter, em multilateralidade e erudição”[40]). Loyola também foi bem-sucedido, porque com a ordem religiosa que criou, a Cia de Jesus, conseguiu infundir uma nova espiritualidade ao catolicismo e com isso contribuiu decisivamente para recuperar, à Igreja de Roma, um terço da Europa que havia aderido ao protestantismo. Loyola, tal como Calvino, também era dono de uma força de vontade, de uma disciplina e de uma capacidade de liderança verdadeiramente prodigiosas. E a semelhança entre ambos se dá também com as suas respectivas doutrinas. Se Calvino fez do cristão um monge para toda a vida, Loyola com seus Exercícios Espirituais, elaborou um manual visando induzi-lo a renunciar ao mundo sem o deixar; ensinando-o a atingir Deus agindo; de modo que, em ambos, a crença na renúncia do mundo foi substituída pela crença na virtude da ação no mundo.[41] Como todos os ramos do protestantismo, também o catolicismo pós Concílio de Trento quis restaurar a primitiva pureza do cristianismo, e entre tantas reverberações posteriores desse espírito veja-se essa bela formulação de Georges Bernanos, escritor francês, católico e conservador: “a Igreja foi encarregada pelo bom Deus de manter no mundo este espírito de infância, esta ingenuidade, esta vivacidade. O paganismo não era o inimigo da natureza, mas somente o cristianismo a engrandece, a exalta, a coloca na medida do homem, do sonho do homem”.[42]

Contudo, e como é ultraconhecido, um abismo separa o cristianismo de Loyola do de Calvino. O primeiro oferece um programa de salvação de acordo com a autoridade do Papa, da Igreja romana, e por isso um dos exercícios espirituais reza: “Se desejamos estar seguros de que estamos certos em todas as coisas, devemos sempre estar prontos a aceitar este princípio: eu acreditarei que o branco que eu vejo é preto se a hierarquia da Igreja assim definir”.[43]  O segundo oferece um programa de salvação de acordo unicamente com a autoridade do livro, da Bíblia, e por isso, em última análise, cabendo ao fiel que o lê, vale dizer, à sua consciência individual, a correta interpretação. Daí a razão de o protestantismo em geral, ter dado origem, nas palavras de Gabriel Monod, “à série ilimitada das formas religiosas do livre pensamento”.

******

Volto a Trotsky, pois será por meio dele que tratarei na Revolução Russa, infelizmente com muita brevidade, da questão da energia e da violência revolucionárias. Antes, porém, faz-se necessário apresentar, ainda que de maneira sucinta, esse herói trágico da Revolução. Leon Trotsky (1879-1940), na sua rara e inigualável trajetória pessoal, teve a  fortuna de ter estado, dentro e fora da Rússia, nos lugares e nos momentos certos; teve a virtù de ter sabido – em pelo menos dois momentos cruciais desse período, isto é, em 1905 e 1917 – montar e conduzir o carro da história com incrível energia, capacidade e ousadia; e, nas duas décadas seguintes, lutando insanamente na situação de profeta desarmado e banido, teve a capacidade e talento, como historiador, para interpretar, com muito brilho, seu próprio passado e o da Rússia e da Europa em guerra e em revolução. Na Rússia, nenhum outro revolucionário, nem mesmo Lenin, foi tão culto, tão versátil e universalista no pensamento (no domínio de línguas e de literaturas, de história e de política) e tão internacionalista na ação.[44]

Deutscher, na sua já mencionada biografia de Trotsky, chama a atenção para a “tragédia verdadeiramente clássica da vida de Trotsky, ou melhor, uma reprodução da tragédia clássica nos termos seculares da política moderna”.[45] Nesse sentido, destaco a seguir aquela que é certamente a mais cruel ironia a marcar essa trajetória trágica e clássica. Como é sabido, Trotsky, em texto de 1904, fez a crítica mais contundente e premonitória ao partido bolchevique, tal como Lenin o estava construindo naquele momento. Para atacar os novos jacobinos russos, isto é, os bolcheviques, critica nos seguintes termos os antigos jacobinos, os da Revolução Francesa, “ [eles] eram utópicos; nós aspiramos a expressar a tendência objetiva. Eles eram idealistas… nós somos materialistas… eles eram racionalistas, nós somos dialéticos… Eles cortaram cabeças, nós as esclarecemos com a consciência de classe”. E também: “Não pouparam nenhuma hecatombe humana para construir o pedestal de sua Verdade…”. E ainda: “Um tribunal jacobino teria julgado, sob a acusação de moderação, todo o movimento trabalhista internacional, e a cabeça de leão de Marx teria sido a primeira a rolar sob a guilhotina”.[46]

Ao pensar na defesa que Lenin e os recém constituídos bolcheviques faziam de um partido uniforme, disciplinado e centralizado, Trotsky, são suas palavras, “sentia um calafrio percorrer sua espinha”. Em uma passagem posteriormente muito lembrada, profetiza que os “métodos de Lênin podem levar ao seguinte: a organização do partido [sua liderança] coloca-se a princípio no lugar do partido como um todo; em seguida, o Comitê Central coloca-se no lugar da liderança; finalmente um único ‘ditador’ coloca-se no lugar do Comitê Central”.[47]

Em 1907, já com a experiência da Revolução de 1905 às costas, Trotsky, ao refletir sobre o atraso russo, contrastando-o com o avanço europeu ocidental (onde imperava “a zona ensolarada da ideologia”), escreveu que os intelectuais de seu país tinham o “fanatismo das ideias, impiedosa autolimitação e autodemarcação, desconfiança, suspeita e observação vigilante de seu próprio partido…”.[48]

E, no entanto, ao se aproximar o momento da Revolução de 1917, pela qual tanto ansiava e que sabia estar a caminho (em carta de 1916 afirma “…ouvir o som distante dos acontecimentos que se aproximam. Nós os esperamos, nós os convocamos; nós os preparamos”[49]), Trotsky deixa de lado todas essas objeções, todos esses escrúpulos e dúvidas sobre o partido bolchevique e sobre o atraso russo, e a estes se integra e atua em conformidade e com implacável energia. Nesse sentido, basta apenas lembrar do que ele fez enquanto comandante do Exército Vermelho, por ele criado para vencer a guerra civil, do que escreveu e disse, durante os anos do chamado comunismo de guerra (por exemplo, em Terrorismo e Comunismo e  num Congresso Sindical, ambos em 1920); e a seguir, de como agiu durante a longa luta que travou com Stalin até ser exilado da União Soviética, recusando-se a sair do Partido e, em consequência, aceitando e obedecendo, impotente, às suas decisões, ou seja, à Stalin, que não lhe deu trégua até assassiná-lo no México.

Em setembro de 1917, na presidência do Soviete de Petrogrado, afirmara “Somos todos homens do partido, e mais de uma vez haveremos de divergir. Mas conduziremos o trabalho do Soviete de Petrogrado dentro de um espírito de legalidade e de plena liberdade para todos os partidos. A mão do Presidium jamais se prestará à supressão de uma minoria”![50] E no XIII Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1924, disse Trotsky (quase certamente com um novo e dessa vez dilacerante calafrio na espinha, porque agora corria o risco de sucumbir dentro do Partido, e fora dele, de ir para “a lata de lixo da história”, como ele mesmo dissera mais de uma vez de seus adversários e como era comum se dizer entre comunistas): “Em última análise, o Partido está sempre certo, porque é o único instrumento histórico que a classe trabalhadora tem para a solução de suas tarefas fundamentais… Sei que não podemos ter razão contra o Partido. Só podemos ter razão com o Partido e através do Partido porque a História não criou nenhuma outra forma para a realização do nosso direito”![51] (Como não lembrar da formula adotada pela Igreja Católica, uma vez iniciada a Reforma, diante de Lutero e demais protestantes: Extra Ecclesiam nulla salus).

A trajetória histórica de Trotsky é irônica e trágica no mais alto grau porque ele anteviu e denunciou o que iria acontecer com o Partido bolchevique (sua autonomização e centralismo – nada democráticos – despóticos ao extremo); e, não obstante, a partir de 1917, já no poder, assumiu e aplicou sem hesitação esses procedimentos que culminaram no uso do terror e da ditadura, e a seguir, perdido o poder, justificou e legitimou a vitória de Stalin ao sustentar que não se pode ter razão contra o Partido. Suprema ironia, como profeta armado, isto é, enquanto esteve no poder, Trotsky também deve ter provocado, e em mais de um interlocutor, um calafrio na espinha!

Segundo Deutscher, “de todas as personalidades do socialismo alemão, ninguém era por origem, temperamento e dons políticos e literários, mais afim com Trotsky do que Rosa Luxemburgo… Encontravam-se por vezes na casa de Kautsky, mas continuavam distantes um do outro, talvez devido à sua afinidade extraordinária”.[52] Como quer que seja, também a revolucionária Rosa Luxemburgo morreu tragicamente (assassinada, em janeiro de 1919, por oficiais militares e paramilitares alemães). Mas, diferentemente de Trotsky, ela nunca esteve no poder; e, pouco antes de morrer, redigiu o programa para a Liga Spartakista (o nome adotado pelo partido comunista alemão), no qual se lê: “A Revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato… Não é a tentativa desesperada de uma minoria de moldar o mundo à força, de acordo com o seu ideal, mas a ação de grandes massas de milhões de pessoas, chamadas a cumprir a missão da história, de transformar a necessidade histórica em realidade”.[53]

Um paralelo entre esses dois heróis trágicos permite, por um lado, assinalar que tanto um quanto a outra foram os mais emblemáticos revolucionários de toda uma geração e época revolucionárias. Na visão de ambos havia em maior ou menor grau utopia e sonho, messianismo e apocalipse; Rosa com sua crença na greve geral (“saúda[ndo] na revolução o apogeu de ‘um século de evolução da Europa’”[54]), e Trotsky, com sua crença no poder milagroso da ciência, que o levou, mesmo na condição de profeta desarmado, a escrever em Literatura e Revolução, de 1924:  “Essas perspectivas seguem-se da totalidade do desenvolvimento do homem… rompendo, por meio da tecnologia, a rotina bárbara de seu trabalho e derrotando a religião por meio da ciência… elevar-se-á a novas alturas, crescerá, transformando-se num tipo biológico e social superior – no super-homem, se quiserem”.[55] E dois anos depois, em 1926, a prever: “… A maior tarefa da Física contemporânea é arrancar do átomo sua energia latente – abrir uma brecha pela qual a energia ascenda a todo o seu poderio… [pel]a energia atômica que se tornará nosso combustível e força motriz básica”.[56]

Por outro lado, como resistir a especular sobre o que teria feito Rosa Luxemburgo se, por acaso, tivesse chegado ao poder, isto é, se ela também teria recorrido ao terror e à ditadura como fizeram Trotsky e o Partido bolchevique. Vamos dar-lhe o crédito de que, talvez, tivesse renunciado ao poder para não renunciar ao seu pacifismo e humanitarismo, ou seja, vamos situá-la intransigentemente no polo da liberdade, esse polo que, juntamente com o da necessidade, regem todas as ações humanas e que são tão caros ao marxismo.

Nesse sentido, e tendo em mente as duas viradas históricas anteriores, é o caso de – (fazendo um quarto e último parêntese) – associar o nome de Rosa Luxemburgo (1870-1919) ao de Thomas Paine (1736-1809) e ao de Erasmo (1466-1536). Esses três protagonistas, mais ou menos reconhecidos pela historiografia como a(u)tores importantes, nunca foram, contudo, pensados em comum; certamente porque, pertencendo a épocas diferentes, não parecem apresentar, à primeira vista, nada que os acomune. Olhando-se bem, contudo, é possível encontrar neles alguns aspectos semelhantes que justificam um tal paralelo. Os três tiveram origem social simples, subalterna e, no caso de Rosa, etnicamente estigmatizada: o holandês Erasmo nasceu pobre e de pai desconhecido, o inglês Paine, de pai artesão e de mãe de baixa classe média, e Rosa, de uma família judaica polonesa de classe média; foi, portanto, por seus próprios méritos, por suas inteligências e esforços, que eles se tornaram protagonistas de primeira grandeza.

Esse tipo de origem social contribuiu, talvez decisivamente, para o fato de os três nunca terem desenvolvido nenhum tipo de vínculo de pertencimento quer com a terra natal, quer com a sociedade e o Estado correspondentes. Em outros termos, os três, e cada qual à sua maneira, transcenderam por completo não apenas suas origens sociais, mas, e sobretudo, as de seus respectivos países/Estados.[57] Eles figuram, assim – ou deveriam figurar – entre os mais cosmopolitas e universalistas protagonistas de suas respectivas épocas. Na verdade, eles foram insuperáveis nesse aspecto. Erasmo, em carta a Zwinglio (o reformador suíço), escreveu: “Quero ser um cidadão do mundo, igualmente amigo de todos, ou melhor ainda, estranho a todos… Sempre quis ser só, e não há nada que odeio mais que os homens ligados a um partido”.[58] Escreve Paine, em 1792: “Independência é minha felicidade e vejo as coisas como elas são, sem consideração a lugar ou pessoa. Meu país é o mundo e minha religião é fazer o bem”.[59] De Rosa Luxemburgo, basta lembrar que ao mesmo tempo em que vive e luta na Alemanha, também é representante dos partidos da socialdemocracia polonesa e russa, como no Congresso da Segunda Internacional, realizado em Stuttgart em 1907.[60]

Coerentemente com esse cosmopolitismo, eles foram genuína e radicalmente pacifistas em meio às guerras e às revoluções que marcaram os momentos de suas vidas. E, não obstante, eles foram – e como! – otimistas (embora, no caso de Erasmo, somente até 1517), vendo o seu presente, o seu próprio tempo, como a antessala de um futuro radioso. Erasmo, em carta escrita pouco antes de 1517, diz ter a sensação de estar vivendo numa idade de ouro; Paine, em 1791, “Pelo que vemos agora, nenhuma reforma no mundo político deve ser considerada improvável. É uma época de revoluções, na qual tudo pode ser esperado”;[61] e Rosa, que (um)a iminente greve geral de massa daria início simultaneamente à revolução e ao socialismo.

Os três sonharam com um mundo novo. Erasmo, com uma Respublica Christiana purificada pela Reforma da Igreja e pacificada pelos soberanos cristãos da Europa; Paine, com Repúblicas liberadas (que “formarão ligas e convenções, e quando algumas estiverem assim confederadas, o progresso será rápido…[62]) do domínio secular das aristocracias e do despotismo monárquico; Rosa, nem precisaria dizer, com um mundo no qual todos os homens e mulheres, e de todos os lugares do mundo, seriam  livres e iguais, emancipados de todas as formas de poder, inclusive, e sobretudo, o do capital e o do Estado.

Assim, e por fim, podemos dizer que cada um deles foi, de alguma maneira, maître à penser de seu tempo. Se, quanto à Erasmo, não há nenhum dúvida a respeito, dado que sempre foi assim reconhecido, nas palavras de J. Huizinga, como “o cérebro, o coração e a consciência de seu tempo”, vale dizer, como o primeiro maître à penser do Ocidente moderno; e se Rosa  foi – e continua –   a ser reconhecida por todas as correntes marxistas como uma autoridade intelectual, uma entre os grandes maître à penser do marxismo e do socialismo; Paine, contudo, não recebeu, como mereceria, esse reconhecimento nem dos historiadores nem dos próprios contemporâneos, com poucas exceções.

Mas é preciso lembrar que dois dos panfletos que Paine escreveu, Common Sense e Rights of Men, foram lidos por milhões de pessoas, dos dois lados do Atlântico – e era a primeira vez que isso acontecia na história – por isso, disse um seu contemporâneo e adversário político (insuspeito, portanto), o ex-presidente dos Estados Unidos, J. Adams: “não conheço nenhum outro homem no mundo que tenha exercido maior influencia nos últimos trinta anos do que Tom Paine”.[63] Assim, permito-me sustentar que Paine foi o primeiro maître à penser do homem comum de sua época (fins do século XVIII e início do XIX). Época que o historiador liberal norte-americano R. Palmer, injustamente esquecido, intitulou the age of the democratic revolution, antes de, logo a seguir, o historiador E. Hosbsbawm, merecidamente consagrado, a intitular the age of revolution.[64]

Não posso encerrar esse já longo parêntese sem tocar no dilema moral que certamente atormentou mais de um protagonista nas três revoluções, sobretudo depois de termos tratado da figura de Erasmo, emblemática nesse sentido pelo fato de, ao se recusar a abraçar um dos lados da contenda entre protestantes e católicos, não ter estado (tanto aos olhos de seus contemporâneos, quanto aos dos historiadores do nosso tempo) à altura das circunstâncias criadas pela Reforma e –  ironia cruel –  por ele próprio, daí a razão do dictum cunhado à época: “Erasmo pôs o ovo que Lutero chocou”. Viu-se como Lutero passou a odiar Erasmo a partir do momento em que se dá conta de que este jamais aderiria à causa dos protestantes. Veja-se agora como, o também humanista e reformado de primeira hora, Ulrich von Hutten, se dirige a Erasmo, captando a situação dilacerante em que este se encontra: “Te verás obrigado a te voltares contra ti mesmo e com tua honestidade contra tua honestidade de outrora. Teus próprios escritos lutarão entre si”.[65]

É quase um consenso entre os estudiosos de Erasmo que não foi o medo que o impediu de tomar partido na hora decisiva, nem que, ao agir dessa maneira, ou melhor, ao não atuar por nenhum dos lados, tivesse entrado em contradição com o que havia sido e/ou feito antes. Quem talvez tenha melhor captado o drama de Erasmo, foi o historiador, também holandês, J. Huizinga, em sua pequena mas brilhante biografia do antepassado: “Em todas as questões controversas do espírito [Erasmo] reconhecia a eterna ambiguidade das coisas humanas… É o trágico, fundamental defeito do seu temperamento: não querer e não poder ir nunca às últimas consequências… A sua desgraça diante do tribunal da história foi que ele sempre pôs à mostra as suas fraquezas, ao passo que a sua grandeza permanece velada na profundidade de seu animo… Erasmo pertence ao grupo, indubitavelmente pequeno, dos que são ao mesmo tempo idealistas absolutos e, contudo, moderados. Eles não podem suportar a imperfeição do mundo e a ele tem necessidade de se opor; mas, quando se chega aos extremos, não se sentem à vontade, têm medo da ação, porque sabem que ela destrói tanto quanto constrói, e se retiram… Também este é um dos aspectos trágicos da vida de Erasmo: ter visto melhor do que ninguém o novo que estava por vir, e não o ter podido aceitar, mesmo tendo entrado em conflito com o velho”.[66]

Há um escritor importante, ao qual já recorri acima, Stepan Zweig (1881-1942), que estabeleceu com Erasmo – transcendendo todas as avaliações negativas-positivas existentes sobre este último – uma relação muito especial, certamente única. Com efeito, Zweig, em sua autobiografia, também já citada, confessa que na biografia que escreveu sobre Erasmo, publicada em 1938, de tal forma se identificou com o grande humanista que acabou por vê-lo como o seu alter ego: “Depois de terminar esse autorretrato velado”, lê-se no penúltimo capítulo do livro; e, em duas passagens anteriores, “a minha atitude natural em todas as situações perigosas sempre foi a de ser evasivo, e não apenas nessa ocasião precisei reconhecer como justa a acusação de ser indeciso, feita tantas vezes em um outro século ao meu idolatrado mestre Erasmo de Roterdã” (ênfases acrescentadas). E ainda: “Agora, pela primeira vez, eu tinha a sensação de falar de dentro de mim e ao mesmo tempo de dentro de minha época. Ao tentar ajudar os outros, acabei então ajudando a mim mesmo a compor minha obra mais pessoal, mais particular ao lado de Erasmo, com a qual, em 1934, nos dias de Hitler, consegui me reerguer de uma crise semelhante”.[67]

Zweig, nos dez anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, foi talvez o autor mais lido na Europa e um dos que mais ajudou, graças à sua popularidade e recursos, a muitos perseguidos dos dois lados do campo político cada vez mais polarizado. Austríaco, nasceu no seio de uma rica família da burguesia judaica. Uma vez adulto, passou –  sem nunca renegar nem sua origem étnica judaica nem sua pátria austríaca – a se sentir como se sentira Erasmo: “durante quase meio século eduquei o meu coração a bater de maneira cosmopolita, como o de um ‘cidadão do mundo’”; e a ver a Europa como “a nossa pátria sagrada, berço do Partenon da nossa civilização ocidental”; por isso, a única posição que tomou em toda a sua vida foi a de “continuar livre e fiel à própria convicção, mesmo contra o mundo inteiro”, e lutar pela preservação desse patrimônio, “agir… em prol da ideia que havia muitos anos se tornara a verdadeira ideia da minha vida: a união espiritual da Europa”.[68]

Como Erasmo, também Zweig viu sua Europa dilacerada e devorada pela guerra e pela polarização ideológica. Se Erasmo viveu os últimos dez anos de sua vida isolado e amargurado, sentindo um permanente calafrio na espinha por causa do que se passava na Europa e por causa das recriminações e ameaças incessantes que recebia de todos e por todos os lados; Zweig, igualmente a partir de 1913 e até a morte, passou a – são suas palavras – “senti[r] o terror em minha garganta”.[69]

Em sua biografia de Erasmo, ele escreve, como se estivesse falando de si mesmo e de seu tempo: “Repentinamente corresponde a Erasmo uma missão histórica que excede suas forças: encarnar entre tanta crispação a razão e, armado unicamente com a pluma, defender a unidade da Europa, da Igreja, da humanidade e do cosmopolitismo frente à decadência e à aniquilação”. “Mas não se engane velho: seu tempo verdadeiro passou e seus campos secaram. O mundo está em guerra, uma guerra de vida ou morte. O espírito toma partido e surgem turbas hostis. Já não se tolera a quem é livre, independente, a quem está a margem. Todo o mundo luta a favor ou contra da renovação evangélica e já não adianta nada fechar as janelas e evadir-se nos livros… De um lado e de outro ressoa a eterna e cruel coação: ‘Quem não está conosco está contra nós’. Se o cosmos se rompe em dois, a fratura atravessa a todos e a cada um de seus habitantes”.[70]

Retorno uma última vez à esfera da necessidade, ao contexto em que Trotsky e Rosa viveram e morreram, e que foi marcado pela cultura e prática da violência, uma violência que foi num crescendo a partir de meados do Oitocentos até atingir um paroxismo nas quatro primeiras décadas do Novecentos; uma violência onipresente nos discursos e nas ações políticas e em todas as demais esferas da vida e da cultura. Nem é preciso mencionar os nomes e as correntes de pensamento que não só a expressaram como a praticaram, como o social-darwinismo e o futurismo, para nos limitarmos ao campo conservador e ao período formador do pensamento de nossos dois protagonistas.

Também os fundadores do materialismo histórico, estiveram impregnados dessa cultura; basta lembrar, no caso de Engels, seus escritos sobre a violência na história; e, no caso de Marx, o que ele afirmou na Liga dos comunistas de Londres, em 1850: “Dizemos aos operários: vocês devem viver vinte, trinta, cinquenta anos de guerras civis e de batalhas não só para transformar o sistema social, mas também a vocês mesmos e para serem capazes de exercer a supremacia política”.[71]

Se existe mais algum consenso entre os historiadores, além daquele já mencionado sobre a forte presença da Revolução Francesa na Revolução Russa, certamente é o consenso sobre essa avassaladora cultura da violência que antecede e marca, da maneira mais sanguinária e mortífera que se possa imaginar, a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de 1917. De uma perspectiva marxista independente, Deutscher chamou a atenção para o fato de que não só as correntes conservadoras como também as socialistas, e de todos os países europeus (tanto dos que aderiram ao apelo para sair em defesa de suas respectivas pátrias, quanto dos que se recusaram a isso, como foi o caso do Partido Bolchevique na Rússia), quando chegaram ao poder sentiram-se justificadas e legitimadas para se entregarem à mais desenfreada violência.

Pois não havia a burguesia governante na Europa dado o exemplo ao provocar a hecatombe que dizimava milhões e milhões de pessoas? De uma perspectiva de esquerda também independente, mas não marxista, T. Judt afirmou em seu último livro: “Tudo isso teria sido muito mais difícil de imaginar na ausência da Primeira Guerra Mundial e do culto da morte e da violência ao qual deu origem. O que os intelectuais comunistas, e seus contrapartes fascistas, tiveram em comum nos anos seguintes à 1917 foi uma profunda atração pela luta mortal e por seus benefícios sociais ou resultados estéticos”.[72] E à direita, o historiador conservador norte-americano, R. Pipes, escreveu: “Marxismo e Bolchevismo, seu rebento, foram produtos de uma era na vida intelectual da Europa que foi obcecada pela violência…”.[73]

É chegada a hora de concluir e de tentar um balanço sobre as três revoluções. Se, considerando tudo o que foi dito, ficou explícito que a Reforma está avaliada como um êxito histórico e se está implícito que o mesmo ocorreu com a Revolução Francesa; vou, no caso da Revolução Russa, suspender o juízo e me valer do que disse Chu En Lai  (um dos líderes históricos da Revolução Chinesa, e que foi por muito tempo Ministro das Relações Exteriores) quando perguntado sobre como considerava a Revolução Francesa, respondeu que se tratava de um acontecimento histórico muito recente para ser devidamente avaliado!

Mas, não podendo renunciar ao propósito que percorre toda esta apresentação, não posso deixar de assinalar dois paradoxos. Primeiro paradoxo: das três viradas revolucionárias, anunciadas e imprevistas, e de todas as quais resultaram três mundos históricos novos, somente aquela que nem se pensou, e nem é comumente conceituada, como uma revolução, ou seja, a Reforma, acabou por revelar um novo homem, o reformado, e uma potencialidade que não parece ter fim. Por outro lado, se da Revolução Russa não emergiu o novo homem, o comunista do futuro; do comunista do passado, isto é, do tempo da Revolução Bolchevique, pode-se dizer que se assemelhou, como Trotsky lucidamente percebeu, muito mais com o revolucionário protestante calvinista do que com o revolucionário jacobino. Acrescento à uma sua passagem já citada (Para onde vai a Grã-Bretanha), esta outra: “… é impossível não nos surpreendermos com algumas das características que tornam semelhante o caráter do exército de Cromwell e o caráter do Exército Vermelho… Os guerreiros de Cromwell consideravam-se puritanos, em primeiro lugar, e só em segundo lugar soldados, tal como nossos guerreiros se julgavam primeiro revolucionários e comunistas e só depois, soldados”.[74]

Trotsky também percebeu que os feitos da Revolução Francesa, e todos os demais efeitos que imediatamente se lhe seguiram, iriam empalidecer diante da revolução que estava por vir. Num escrito de 1915, farejou, com incrível perspicácia, que “… o atual desastre provocará, no curso de anos, décadas e séculos, uma radiação sanguinária, à luz da qual as gerações futuras verão seu próprio destino, tal como a Europa até agora sentiu a radiação da grande Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas. E, não obstante, como esses acontecimentos foram pequenos… em comparação com o que estamos fazendo ou experimentando agora e, especialmente, com os acontecimentos para os quais marchamos”.[75] Vejo-me tentado a acrescentar –  tendo em vista a perspectiva adotada e tudo o que foi dito – que a Revolução Francesa também empalidece até mesmo na comparação com a Reforma protestante e seus mais imediatos desdobramentos!

Segundo paradoxo: Tocqueville, em o Antigo Regime e a Revolução, afirma que “A Revolução Francesa foi uma revolução política que operou à maneira de uma religião e tomou alguns de seus aspectos… ou melhor, tornou-se ela própria uma espécie de nova religião…”(ênfases acrescentadas).[76] Com o privilégio da perspectiva histórica que nos é dado ter hoje, me pergunto se essa afirmação não parece valer – e se ajustar –  mais ainda à Revolução Russa do que a Revolução Francesa? Se as duas revoluções, a de 1789 e a de 1917, operaram à maneira de uma nova religião, não seria possível sugerir, e aí está o paradoxo, que a Reforma foi uma Revolução religiosa que operou de uma maneira política, tornando-se ela própria uma espécie de nova política, para manter os termos de Tocqueville?

Concluo apresentando dois finais, ambos tremendos, sobre um possível sentido a ser dado à modernidade tal como a configuramos e às suas três revoluções constitutivas. Um final, é secular e terrivelmente triste e desesperançado: a modernidade foi/é a busca do paraíso perdido, o único verdadeiro, como se lê no livro de Proust Em Busca do Tempo Perdido; o outro, é espiritual, terrivelmente esperançoso, mas enigmático: a modernidade foi “…um trabalho de Deus, porque não foi feita pela vontade dos homens e porque foi um momento de virada na história humana”!  Essas são palavras do historiador marxista inglês Christopher Hill, com as quais encerra um seu conhecido artigo, de 1981, sobre a Revolução Inglesa de 1640.[77]  E a elas podemos contrapor as seguintes palavras de Raymond Aron: “O historiador não é nem o homem de ação, nem o filósofo; conserva os dois termos e investiga assim como aconteceu o que chama a atenção do filósofo, como a vontade dos atores, o destino e a fortuna conspiraram para que se cumprisse aquilo que, nem previsto nem desejado por ninguém, fosse finalmente a obra e a experiência de todos”.[78]

 

Modesto Florenzano, doutor e livre docente, é professor aposentado do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), onde atuou de 1988 a 2017. Dedicou-se prioritariamente aos estudos de história política e história do pensamento político e é autor de numerosos artigos, publicados em periódicos científicos e de divulgação, além do livro As revoluções burguesas (São Paulo: Brasiliense, 1981). Foi editor da Revista de História da USP entre 2000 e 2003.

Curriculum Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4785722D3

 

[1] A primeira versão desse texto, agora ligeiramente modificado e ampliado, foi apresentada como aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em História Social para o ano de 2017, ao qual muito agradeço; ela foi dedicada às professoras Maria Ligia Coelho Prado, amiga e colega de Departamento, e Maria Beatriz Borba Florenzano, arqueóloga e esposa.

[2] As duas citações foram extraídas de FERGUSON, Niall. Civilização: Ocidente x Oriente. São Paulo, 2012. Editora Planeta, pp. 234-5.

[3] Respectivamente em: Tempos Fraturados e Sobre História, São Paulo, Companhia das Letras, 2013 e 1998, pp. 253 e 233.

[4] Apud Ruy FAUSTO “Em torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista”, in Lua Nova, 2008, n. 75, pp. 176-7.

[5] Entrevista publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, 9/02/2015.

[6] A primeira afirmação é de Quentin SKINNER em As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 217; e a segunda de Nicola GARDINI em Rinascimento. Torino, Einaudi, 2010, p. 70.

[7] O historiador italiano Paolo PRODI, falecido em 2016, em Il Tramonto della Rivoluzione (Bologna, Il Mulino, 2015, pp.19 e 20) assim caracteriza o advento da modernidade:  “…começa-se a falar de história moderna como período no qual nada é estável e assume-se justamente esse vocábulo de modus [do qual deriva moderno] como movimento ou modo de ser em devir na realidade concreta: aquilo que é na atualidade, mas não foi do mesmo modo precedentemente. Tudo se torna móvel e tudo passa a ser posto em discussão, tudo é considerado perfectível e modificável, tudo é transição, mais ou menos acelerada. No centro, em substância, está posto o movimento”.

[8] Apud Agnes HELLER O Homem do Renascimento. Lisboa, Editorial Presença, 1982, p.55.

[9] Trata-se de Isaac DEUTSCHER e de sua brilhante biografia, em três volumes, de Trotsky, intitulados respectivamente O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e o Profeta Banido. Traduzidos pela Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. A citação é do primeiro volume, p. 109.

[10] Apud Tamara KONDRATIEVA Bolcheviks et Jacobins. Paris, Les Belles Lettres, 2017, p.27.

[11] Estudios Sobre La Revolución. Madrid, Alianza Editorial, 1970, p. 69, 73 e 69, respectivamente.

[12]1917: Illusioni e realtà della Rivoluzione Russa. Torino, Einaudi, 1970, pp. 55 e 58.

[13] Edmund BURKE Thoughts on French Affairs. Londres, Bohn’s British Classics,1842, p. 564.

[14] CONDORCET Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Editora Unicamp, 1993, p. 116. Joseph de MAISTRE “Réflexions sur le protestantisme dans ses rapports avec la souveraineté”, in: Ecrits sur la Révolution, Paris, PUF, 1989, p239 e 213.

[15] Dimensiones de la consciencia histórica, edição Fondo de Cultura Economica, México, 1984, p. 152.

[16] Remake on the Policy of the Allies, op. cit., 598.

[17] Considérations sur la France (1796), op. cit. pp. 98 e 106.

[18] Alexis de TOCQUEVILLE O Antigo Regime e a Revolução (1856). Brasilia, UNB, 1979, p. 145.

[19] Apud André   JARDIN. Alexis de Tocqueville 1805-1859. Paris, Hachette, 1984, p. 398.

[20] Lembranças de 1848. As Jornadas Revolucionárias em Paris. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.95.

[21] Idem, ibidem, p. 95.

[22] O Antigo Regime e a Revolução, op. cit. p. 57.

[23] Não deixa de ser uma ironia o fato de justamente os dois países mais avançados e poderosos da Europa no tempo do Iluminismo, vale dizer, Inglaterra e França, não terem conhecido ou passado pelo despotismo esclarecido. Mas a explicação é simples: a primeira já havia superado, com as Revoluções do século XVII (a de 1640 e a de 1688), o absolutismo; e a segunda por que se o tivesse conhecido, vale dizer, se na França o absolutismo tivesse, com êxito, levado a cabo um programa de reformas, estas teriam realizado a economia da revolução – se é que isso teria sido possível. Sobre esse tema polêmico recomendo a interpretação do historiador italiano Franco VENTURI em Utopia e Reforma no Iluminismo (Bauru, Edusc, 2003) e Settecento Riformatore (Torino Einaudi, os dois volumes com o subtítulo La Caduta dell’Antico Regime, 1984).

[24] Stefan ZWEIG Autobiografia: o mundo de ontem. Rio de Janeiro, Zahar, 2014, pp. 184 e 206.   

[25] Apud Lawrence STONE Causas da Revolução Inglesa 1529-1642. Bauru, Edusc, 2000, p. 107. Bem no início da Revolução Francesa, Rabaut de St. Etienne, deputado de religião protestante, proferiu o seguinte discurso na Assembleia Nacional Constituinte (que lembra em versão ainda mais radical o sermão de Thomas Case): “Todos os estabelecimentos na França coroam a infelicidade do povo: para torna-lo feliz é preciso renová-lo; mudar suas ideias; mudar suas leis, mudar seus costumes… mudar os homens; mudar as coisas; mudar as palavras… tudo destruir; sim, tudo destruir; por que tudo deve ser recriado”. Esta passagem foi reproduzida em nota de pé de página – e imortalizada – por Burke nas Reflexões sobre a Revolução em França em 1790.

[26] Ibid, ibidem, p. 241.

[27] Sefan ZWEIG Erasmo de Roterdam. Triunfo y tragédia de um humanista (1938). Barcelona, Paidós, 2005, p.120.

[28] Idem, ibidem, p.122.

[29] Idem, ibidem, p.183.

[30] Apud CARR, 1917… op. cit., p. 89.

[31] Apud Ezio MAURO Cronache di una Rivoluzione. Milano, Feltrinelli, 2017, p. 130-1.

[32] Apud ZWEIG, op. cit, p.179.

[33]Richard STAUFFER La Réforme. Paris, PUF (col. Que sais-je?), 1993, p.35-6.

[34] Por que sou apolítico, 1919. Como é sabido, com o advento do nazismo Thomas Mann mudou radicalmente de posição, engajando-se, com sua pena e desde o exílio, na luta contra esse regime. E quase certamente não mais poderia sustentar aquela afirmação sobre Lutero.

[35] Trata-se de Sheldon S. WOLIN Politics and Vision. Princeton Univ. Press, 2004.

[36] Cf. o autor e obra acima.

[37] Trata-se de John Knox, o fundador do calvinismo escocês, e dos historiadores H. Trevor Roper e E. Leonard.

[38] G.R. ELTON A Europa durante a Reforma 1517-1559. Lisboa, E. Presença, 1982, p. 174.

[39] São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971 (edição original 1927) p. 133-4.

[40] F. ENGELS Dialética da Natureza, 1876.

[41] Cf. ELTON, op. cit. p. 158 e 159.

[42] Journal d’un curé de campagne, Librarie Plon, Paris, 1936, pp. 24-5.

[43] Exercícios Espirituais, Edições Loyola, São Paulo, 2000, p. 34.

[44] De acordo com Deutscher “De ninguém o grito de europeização vinha mais natural do que de Trotsky.  Mais do que qualquer outro emigrado, ele era um ‘europeu’… Com a adaptabilidade e receptividade mental do judeu errante – embora tais qualidades não sejam exclusivamente judias – sentia-se à vontade na maioria dos países europeus, estava apaixonadamente absorvido em seus assuntos, falava e escrevia em sua língua e participava de seus movimentos trabalhistas”. (Op. cit. vol. 1, p. 200).

[45] Op. cit, vol. 1, p. 4

[46] Idem, ibidem, p.104.

[47] Idem, ibidem, p.105 e 102.

[48] Idem, ibidem, p. 207 208.

[49] Idem, ibidem, p.260.

[50] Idem, ibidem, p.309.

[51] Op.cit., vol. 2, p. 152.

[52] Op.cit., vol. 1, p. 201.

[53] Apud, CARR, 1917… op. cit. p. 73.

[54] Idem, ibidem, p. 70.

[55] Op.cit., vol. 2, p. 213.

[56] Idem, ibidem, p. 192.

[57] Devemos, contudo, relativizar o que estamos afirmando, lembrando que (nas palavras de R. ARON, op. cit. p. 121) “os indivíduos, enquanto seres humanos e sociais, são o que são porque formaram-se num grupo, porque tomaram dele os logros técnicos e culturais transmitidos por séculos. Nenhuma consciência, enquanto humana, está encerrada em si mesma. Só as consciências pensam, mas nenhuma consciência pensa sozinha, encerrada na solidão”.

[58] Apud, Johan HUIZINGA Erasmo. Torino, Einaudi, 2002 (primeira ed. 1924).

[59]  Thomas PAINE Os Direitos do Homem (1791-2). Petrópolis, E. Vozes, 1988, p.194.

[60] Cf. E.H. CARR, 1917… op. cit.

[61] Ibid, ibidem, p. 123.

[62] Ibid, ibidem, p. 201.

[63] Apud CARVALHO, Daniel GomesFLORENZANO, Modesto “A (des)fortuna de Thomas Paine: um problema histórico e historiográfico”, in: Tempo [online] 2019, vol.25, n.2, pp.320-341.

[64] Robert R. PALMER publicou pela Princeton University Press, em 1959, o primeiro volume de sua obra The Age of the Democratic Revolution (e o segundo em 1964); portanto, dois anos antes do livro de E. J. HOBSBAWM The age of Revolution: Europe 1789-1848, que saiu em 1961. O subtítulo do primeiro volume do livro de Palmer é: The Challenge e o do segundo: The Struggle.

[65] Apud, S. ZWEIG, Erasmo… op. cit., p.165.

[66] J. HUIZINGA, op. cit.

[67] Autobiografia… op. cit., p. 338, 208 e 229.

[68] Autobiografia… op. cit., p. 364, 352, 240 e 291. Não se pode deixar de mencionar que este autor que poderia ter escolhido viver nos Estados Unidos ao abandonar a Europa ocupada pelo nazi-fascismo, como fez Hannah Arendt, tenha sido por esta última criticado nos seguintes termos, “Este auto indicado porta voz [dos europeístas] jamais em sua vida preocupou-se com o seu destino”. Citado por Alberto Dines (no posfácio à edição brasileira do livro de Zweig, p.394) que imediatamente acrescenta àquela citação: “A grande pensadora não poderia ser mais cega e injusta”. E também mais cruel, gostaria de acrescentar. Zweig também foi vitima de outra critica, (esta, felizmente, apenas infundada), da filosofa e historiadora A. Heller que, em seu livro O Homem do Renascimento (já citado, na nota de n. 8), escreve: “Estamos longe de aceitar a interpretação de Erasmo proposta por Stefan Zweig, que transforma o filósofo de Roterdã num servil-pequeno burguês oposto a qualquer tipo de empenhamento”!

[69] Idem, ibidem, p. 192. Thomas Mann, em A Montanha Mágica, publicada em 1924, põe na boca de Naphta, um dos personagens do romance, a seguinte afirmação: “O segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é… o terror”.

[70] Erasmo… op. cit. p. 138 e 155.

[71] Apud CARR, 1917… op. cit. p. 89.

[72] Tony JUDT e Timothy SNYDER Thinking the twentieth century.  Penguin, 2012, p. 101e 102.

[73] Richard PIPES Russia Under The Bolchevik Regime. N. Y., Random House, 1995, p. 500.

[74] Apud DEUTSCHER, op. cit. vol. 2, p. 239.

[75]  DEUTSCHER, op. cit. vol. 2, p. 252.

[76]  O Antigo Regime e a Revolução, op. cit. p. 57 e 58.

[77]  Christopher HILL “A Bourgeois Revolution”, in The Collected Essays, vol. 3. Univ. Massachussets Press, Amherst, 1986, p. 118.

[78] Op. cit. p. 83.

Deixe um comentário