“O” Vírus – texto de Stella Franco

“O” Vírus

Stella Franco
Professora do Departamento de História da USP

Você já deve ter tido, nesses últimos dias, a sensação bizarra de viver um cárcere privado enquanto um vírus pernicioso e travesso é flagrado tomando a sua cerveja gelada no bar da esquina. Saiba que ele não está sozinho. Segundo me garantiu um amigo espírita, está acompanhado de “espíritos zombeteiros” que, nesse exato momento, povoam as ruas quase desertas das cidades. Juntos, caçoam de nós, reles mortais, presos em nossas casas.

Se toda brincadeira tem uma dose de verdade, a blague acima serve para mostrar a forte tendência atual à individualização d´O Vírus. Da mesma maneira, podemos perceber uma certa inclinação geral à personificação da natureza. Muitos posts – remetidos por pessoas das mais diversas inclinações político-ideológicas ou até mesmo religiosas – carregam a mensagem de que Ela estaria se incumbindo de frear o curso da humanidade nessa fase em que se encontra dominada pela explosão demográfica, pela correria da vida urbana, pelo uso desenfreado da tecnologia ou, em suma, pelo que chamaremos aqui de “excesso de civilização”.

Ideias parecidas foram produzidas no século XIX, no compasso da Revolução Industrial, cuja história já conhecemos bem: os campos foram cercados; parte significativa da população mudou-se para as cidades; as máquinas começaram a funcionar, literalmente falando, a todo vapor; a poluição – do ar e sonora – começou a incomodar o cotidiano das pessoas; enfim, a pobreza urbana tornou-se um problema social. Justamente nesse contexto, produções e ações que convencionamos nomear de “românticas”, foram geradas, opondo-se ao já citado “excesso de civilização”. Será que, ao entendermos o papel desta nova “peste” como um possível limitador à nossa sanha evolutiva, estaríamos reproduzindo novamente atitudes românticas? Nunca é demais olharmos para o passado para refletirmos sobre o nosso presente. Voltemos os nossos olhos para o período de transição entre os séculos XVIII e XIX.

Nesse contexto, a civilização, como a conhecemos, passou a ser desejada por muitos. O próprio termo “civilização” chegou a ganhar um novo sentido. De acordo com Jean Starobinski, em As máscaras da civilização, a palavra, que até o século XVIII preservara seu significado jurídico de “tornar civil uma causa criminal”, começou a ser lida como sinônimo de progresso, associada ao moderno. Foi entendida como um “processo fundamental da história” que envolvia toda a humanidade, correspondendo a um valor a ser alcançado e que devia ser almejado por todos. Foi tratada como fenômeno antinômico à natureza. Esta supostamente viria primeiro, sendo pensada como estágio associado à selvageria e à barbárie. No entanto, passado o primeiro estágio de euforia, alguns indivíduos sensíveis começaram a fazer o caminho de volta e passaram, utopicamente, a desejar a vida em harmonia com a natureza. Raymond Williams mostra, em O campo e a cidade: na história e na literatura, que, na Inglaterra, na construção de grandes parques florestais (nos quais era possível a um indivíduo até se perder), buscava-se a imitação da natureza selvagem: bravia, tortuosa, sublime. Trata-se de uma evocação nostálgica de um passado perdido, construído justamente em momento histórico em que o uso da tecnologia interferia de maneira intensa no curso da natureza. Em outro nível, mas não menos importante, lembremo-nos do naturalista norte-americano Henry David Thoureau que publicou, em 1854, Walden, ou A vida nos bosques, no qual realiza reflexões críticas à civilização industrial. Produziu a obra quando se encontrava em sua casinha construída à beira do lago que dá título ao livro, situada em propriedade de Ralph Waldo Emerson, outro apologista da natureza. Os exemplos podem se multiplicar, mas, o que interessa aqui é destacar que autores de posições bastante diversas utilizaram esse mergulho na natureza para reagirem a tudo aquilo que pudesse depreciá-la. Por uma chave de interpretação sedutora, mas arriscada, Michael Löwy e Robert Sayre afirmaram, em Romantismo e política, que esse espírito de rebeldia contra a civilização – que envolvia também uma certa dose de rancor em relação ao capitalismo – era o que unificava românticos de diferentes matizes, de socialistas a liberais.

Nos textos desses românticos não faltam projeções da natureza como um ente, ou às vezes como uma força cósmica, capaz de responder às provocações humanas. A descoberta, em meados do século XVIII, das ruínas das cidades antigas devastadas pelas lavas do Vesúvio em 76 d.C., despertou a imaginação utópica de muitos viajantes românticos que passaram a visitar o local a partir de então. Os exemplos disso não são tão remotos. Nísia Floresta, autora brasileira do século XIX – relativamente conhecida entre nós graças à celebração de sua figura por grupos feministas da atualidade -, escreveu as seguintes palavras após visitar as cidades devastadas pelo vulcão: sua cratera “é um abismo sempre pronto a engolir, de um momento para o outro, as modernas belezas criadas a seus pés pela mão do homem”. No livro intitulado Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia, no qual se encontram essas reflexões, ainda mencionou as ruínas de Herculano, outra das cidades vitimadas pelo Vesúvio, afirmando: “Certas naturezas são como terrenos férteis: quanto mais os sulcos do arado passam sobre eles, tanto mais abundantemente produzem. Do mesmo modo, quanto mais essas naturezas são sacudidas pela mão da desgraça, tanto mais desdobram energia para resistir aos abalos molestos”. Ela estava entre os que destacavam as desarmonias entre natureza e civilização. Em sua leitura – romântica – a natureza, como que dotada de vontade própria, podia “responder” veementemente às intervenções humanas.

Muitos textos sobre a pandemia, que circulam hoje, de pessoas de diferentes grupos e formas de pensar, voltam a nos remeter à noção do “excesso de civilização”. O contexto é outro, claro, e não devemos nos deixar seduzir pelos anacronismos. Mesmo assim, é interessante observar como somos amplamente levados a pensar nesta hecatombe do presente como um ato voluntarista da própria natureza (ou de Deus, para alguns), para corrigir o curso das ações humanas.

Ao atribuirmos à natureza uma personalidade, acabamos também pensando no vírus como um ente – um ente que, entre outras coisas, se apropria da nossa vida social e bebe a nossa cerveja gelada no bar da esquina.

 

Referências bibliográficas

FLORESTA, Nísia. Trois ans en Italie suivis d’un voyage en Grèce. Paris: E. Dentu, 1864. (edição traduzida: FLORESTA, Nísia. Três anos na Itália seguidos de uma viagem à Grécia. Natal: EDUFRN, 1998).

LÖWY, Michael e SAYRE, Robert. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.