Em qual coletivo você quer sobreviver? Pensando com Foucault e Latour, por Márcia Regina Barros da Silva

Em qual coletivo você quer sobreviver? Pensando com Foucault e Latour

 

Márcia Regina Barros da Silva

Departamento de História (FFLCH-USP)

 

É bem conhecida a análise de Michel de Foucault sobre as transformações nas técnicas e tecnologias disciplinares, da soberania nas sociedades sob o poder monárquico ao biopoder de meados do século XVIII. As transformações apontadas pelo autor são discutidas extensamente em vários de seus trabalhos, porém no mais recente livro traduzido para o português, Em defesa da sociedade, que reproduz curso realizado entre 1975 e 1976, se vê a atualidade pública e acadêmica de Foucault. O objetivo final do curso foi apontar, a partir do que ele chama de ‘teoria da guerra’, o desenvolvimento do racismo e do fascismo nas relações de força que atuam nas sociedades. Uma passagem que resume bem a percepção de Foucault sobre as características em jogo no exercício dessas relações, reproduz o debate que esteve no centro da sua produção escrita:

 

“… uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perpassa-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor um poder exatamente inverso: poder de “fazer” viver e de “deixar” morrer. O direito de soberania é portanto, o de fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer.” (FOUCAULT, 2018, p. 202)

 

Para Foucault os poderes se exercem em diferentes níveis e lugares, constituindo uma microfísica das relações de subordinação, dos micropoderes cotidianos às ações dos aparelhos de Estado. Tal leitura não é exatamente uma “teoria geral do poder”, como já explicitou Roberto Machado (1995), sendo, contudo, uma busca por compreender a prática de articulação do social. Por que não dizer logo uma prática social? Porque a ideia não é julgar todas as ações com a mesma fôrma. Não é apontar toda e qualquer relação como o exercício de uma subordinação sobre o outro, mas permitir que se destaque o caráter relacional do exercício de sujeição que pode destacar as possibilidades também das capacidades de resistência à submissão.

Foucault empreendeu um projeto de pesquisa no qual foi central apontar a articulação entre produção de saberes e a constituição de poder. As ciências não receberiam, por isso, uma distinção especial de neutralidade, mas seriam implicadas como partícipes do exercício do poder disciplinar. A proposta de Foucault seguiu por via do escrutínio sobre o funcionamento de algumas das instituições disciplinares, entre elas aquelas da prática médica, como o hospital psiquiátrico, seguidas por outros espaços de disciplinarização como o exército, a fábrica e a escola.

Outros autores têm buscado compreender a produção de conhecimentos pela via do escrutínio das ciências em seus próprios espaços de atuação, especialmente os laboratórios científicos, lugares por excelência de registro de acumulação de saberes, entre entidades que são ao mesmo tempo naturalísticas (a natureza), artefactuais (técnicas e tecnologias) e coletivas (humanos e não humanos). O antropólogo Bruno Latour problematiza a produção de conhecimento, tendo em vista pensar o poder não como uma categoria de análise que explica, mas como o que deve ser explicado. Isso significa algo que me parece similar à proposta de Foucault, tendo em vista que para os dois autores é próprio da produção de saberes a multiplicação simultânea da realidade exterior aos seus espaços de produção.

Latour, como Foucault, está muito próximo da busca pela compreensão das práticas materiais do conhecimento, pelo acompanhamento do ciclo de acumulação das ciências e das técnicas, pela investigação dos diversos domínios em que as ciências, assim como os domínios da política, do direito, da religião, se processam. O que o autor reivindica é o entendimento sobre o processo de aquisição de conhecimento, vendo nele a capacidade de constituir centros de conhecimento de onde emanam saberes que os outros polos da sociedade deverão acatar:

 

“Como vemos, o que se chama de ‘conhecimento’ não pode ser definido sem que se entenda o que significa a aquisição do conhecimento. Em outras palavras, ‘conhecimento’ não é algo que possa ser descrito por si mesmo ou por oposição a ‘ignorância’ ou ‘crença’, mas apenas por meio do exame de todo um ciclo de acumulação: como trazer as coisas de volta a um lugar para que alguém as veja pela primeira vez e outros possam ser enviados para trazer mais outras coisas de volta.” (Latour, 2000, p. 357).

 

Esse pequeno recorte na produção dos dois autores não procura fazer um inventário das similitudes e das diferenças entre Foucault e Latour, mas busca encontrar uma introdução que permita abordar a história dos lugares de produção de conhecimento-saber no momento atual. Há em linhas gerais todo um conjunto de autores para os quais discutir como as ciências agem é imprescindível para acompanhar a construção de significados, em signos, agentes, objetos e atores, humanos e não humanos, que não podem mais ser deixados de lado na pesquisa histórica.

Um exemplo evidente no momento é a pandemia atual de Covid-19. Acompanhamos em tempo real as disputas e controvérsias pela descrição da doença, dos seus sintomas, seus efeitos e dos remédios mais eficazes que permitam uma mediação mais controlada pelos humanos do que pelo vírus, como não tem ocorrido até agora. A sabedoria do vírus é fazer com que os humanos persistam em encontrar meios de eliminá-lo ou neutralizá-lo, deixando todo o arcabouço sociopolítico do ordenamento tecnocientífico moderno intacto. A pandemia é um conjunto de várias epidemias com características locais, pois é diferente em diferente partes do mundo, em decorrência das condições de habitabilidade de cada país e região; diferente nas condições de comorbidades das pessoas; diferente perante as qualidades dos aparelhos de atenção sanitária e de atenção clínica; diferente no modo de compreender a coletividade, ou como uma comunidade ou apenas como um amontoado de indivíduos.

Descrever a Covid-19 como apenas uma entidade estática não é possível, mas facilita algumas coisas, permite que cientistas das diferentes áreas trabalhem melhor seus dados, com mais qualidade de aprofundamento e mais eficiência nas descrições, porém esses procedimentos são insuficientes para planejar qualquer futuro em comum. Para perpetuar as capacidades de realizar a habitabilidade do planeta é preciso mais do que descrições individualizantes, é preciso, pelo menos, maior compreensão histórica sobre a inserção das tecnociências no nosso mundo. Mesmo que uma, ou algumas vacinas sejam produzidas, ainda persistirão aquelas condições inicialmente dadas: quem pôde sobreviver, quem poderá sobreviver, sob quais circunstâncias, quais demandas serão respondidas em primeiro lugar, quem vai morrer, quais coletivos vão persistir? O entramado de natureza e sociedade é sempre repleto de muitas coisas, inclusive política e poder.

 

Bibliografia citada

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).  São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010/2018.

LATOUR, Bruno. Ciência em ação. Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 1997/2000.

MACHADO, Roberto. Introdução. Por uma genealogia do poder. In: Michel Foucault, Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979/1995.

 

São Paulo, 08 de junho de 2020