Ruy Fausto

Ruy Fausto

 

Jorge Grespan

 

Muito antes do dia primeiro de maio de 2020, Ruy Fausto fazia parte da história da inteligência brasileira. Amigos e alunos guardarão dele a lembrança da pessoa de trato agradabilíssimo e capaz de auto-ironia fina, de um pianista amante de Noel Rosa e do Jazz, de um grande contador de histórias. Vão lembrá-lo também, como seus leitores, por sua obra tão relevante quanto complexa. Ruy Fausto enfrentou algumas das questões mais significativas de nosso tempo, como a relação entre socialismo e democracia, entre ética e política. Desde sempre, Ruy recusou o caminho autoritário tomado pelas revoluções socialistas do século XX e procurou, durante quase toda a sua vida, liberar o pensamento original de Marx dos entraves dogmáticos que o século lhe aderiu. Para isso, retomou a relação difícil entre a dialética de Hegel e a dialética de Marx, propondo soluções próprias, distantes tanto de uma diferença absoluta da relação entre as duas dialéticas quanto de sua aproximação excessiva, que desfigurasse o aspecto materialista da crítica de Marx a Hegel.

Antes mesmo de que a Ditadura Civil-Militar o obrigasse a sair do Brasil, Ruy já começava a participar de alguns dos debates teóricos mais importantes da época, como o do estruturalismo, lançado no contexto marxista por Louis Althusser. Uma vez exilado em Paris, teve a oportunidade de posicionar-se em relação às questões propostas pelo marxismo francês. Daí resultou um dos pontos que considero mais altos em sua obra: a resposta às objeções feitas por Cornelius Castoriadis à crítica da economia política de Marx. Aqui se revelou a fecundidade de sua reconstituição da dialética, pois, enquanto Castoriadis não via nas oposições entre valor de uso e valor, entre mercadoria e dinheiro, mais do que diferenças nada dialéticas de espécie e gênero, Ruy Fausto demonstrou nelas a presença “pressuposta”, para usar seus termos, da  contradição entre trabalho e capital. Esses embates ensejaram ao pensamento de Ruy grande precisão conceitual e rigor argumentativo, evidentes nos textos que compõem os três volumes de Marx: lógica e política, lançados em 1983, 1987 e 2002, respectivamente. São textos que formaram gerações de intelectuais no Brasil. Seja para concordar ou discordar, era imperativo debater as ideias de Ruy e sua versão criticamente elaborada do marxismo.

Esse debate continua, contudo, porque Ruy nunca deixou de escrever, de dar entrevistas e de pensar a realidade social do Brasil e de outros países. Numa evidência do misto de jovialidade e de seriedade que o caracterizava, Ruy foi talvez o único intelectual brasileiro que aceitou o desafio de ler os escritos de Olavo de Carvalho, ressentido por nunca ter sido levado a sério por ninguém sério em parte alguma. Ruy concluiu, em artigo publicado na Folha de São Paulo em novembro de 2018, que “a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade”. Esse juízo sarcástico derivou, porém, de uma leitura atenta aos jogos da linguagem, a mesma que Ruy dedicava a todos os discursos. Generoso com os jovens, aberto à troca de ideias, Ruy gostava de polemizar e de provocar seus interlocutores. Ele polemizava também consigo mesmo, e talvez isso explique seu distanciamento gradual até do “melhor” marxismo que defendia antes, como ele deixa claro na longa introdução que escreveu em 2001 para o terceiro e último volume de Marx: lógica e política. Talvez, de certa forma, Ruy tenha radicalizado a recusa à violência política presente há muito tempo em seu pensamento.

Embora muitas vezes eu tenha discordado das posições e dos escritos de Ruy Fausto, sempre os considerei um estímulo decisivo ao pensamento crítico. Ruy nos fará muita falta, como intelectual instigante e como ser humano brilhante e jovial.

Jorge Grespan é professor no Departamento de História da USP.