Ruy Fausto

Ruy Fausto

 

Jorge Grespan

 

Muito antes do dia primeiro de maio de 2020, Ruy Fausto fazia parte da história da inteligência brasileira. Amigos e alunos guardarão dele a lembrança da pessoa de trato agradabilíssimo e capaz de auto-ironia fina, de um pianista amante de Noel Rosa e do Jazz, de um grande contador de histórias. Vão lembrá-lo também, como seus leitores, por sua obra tão relevante quanto complexa. Ruy Fausto enfrentou algumas das questões mais significativas de nosso tempo, como a relação entre socialismo e democracia, entre ética e política. Desde sempre, Ruy recusou o caminho autoritário tomado pelas revoluções socialistas do século XX e procurou, durante quase toda a sua vida, liberar o pensamento original de Marx dos entraves dogmáticos que o século lhe aderiu. Para isso, retomou a relação difícil entre a dialética de Hegel e a dialética de Marx, propondo soluções próprias, distantes tanto de uma diferença absoluta da relação entre as duas dialéticas quanto de sua aproximação excessiva, que desfigurasse o aspecto materialista da crítica de Marx a Hegel.

Antes mesmo de que a Ditadura Civil-Militar o obrigasse a sair do Brasil, Ruy já começava a participar de alguns dos debates teóricos mais importantes da época, como o do estruturalismo, lançado no contexto marxista por Louis Althusser. Uma vez exilado em Paris, teve a oportunidade de posicionar-se em relação às questões propostas pelo marxismo francês. Daí resultou um dos pontos que considero mais altos em sua obra: a resposta às objeções feitas por Cornelius Castoriadis à crítica da economia política de Marx. Aqui se revelou a fecundidade de sua reconstituição da dialética, pois, enquanto Castoriadis não via nas oposições entre valor de uso e valor, entre mercadoria e dinheiro, mais do que diferenças nada dialéticas de espécie e gênero, Ruy Fausto demonstrou nelas a presença “pressuposta”, para usar seus termos, da  contradição entre trabalho e capital. Esses embates ensejaram ao pensamento de Ruy grande precisão conceitual e rigor argumentativo, evidentes nos textos que compõem os três volumes de Marx: lógica e política, lançados em 1983, 1987 e 2002, respectivamente. São textos que formaram gerações de intelectuais no Brasil. Seja para concordar ou discordar, era imperativo debater as ideias de Ruy e sua versão criticamente elaborada do marxismo.

Esse debate continua, contudo, porque Ruy nunca deixou de escrever, de dar entrevistas e de pensar a realidade social do Brasil e de outros países. Numa evidência do misto de jovialidade e de seriedade que o caracterizava, Ruy foi talvez o único intelectual brasileiro que aceitou o desafio de ler os escritos de Olavo de Carvalho, ressentido por nunca ter sido levado a sério por ninguém sério em parte alguma. Ruy concluiu, em artigo publicado na Folha de São Paulo em novembro de 2018, que “a única coisa rigorosa no discurso de Olavo de Carvalho são os palavrões. Os palavrões cumprem por si sós duas funções: violência e familiaridade”. Esse juízo sarcástico derivou, porém, de uma leitura atenta aos jogos da linguagem, a mesma que Ruy dedicava a todos os discursos. Generoso com os jovens, aberto à troca de ideias, Ruy gostava de polemizar e de provocar seus interlocutores. Ele polemizava também consigo mesmo, e talvez isso explique seu distanciamento gradual até do “melhor” marxismo que defendia antes, como ele deixa claro na longa introdução que escreveu em 2001 para o terceiro e último volume de Marx: lógica e política. Talvez, de certa forma, Ruy tenha radicalizado a recusa à violência política presente há muito tempo em seu pensamento.

Embora muitas vezes eu tenha discordado das posições e dos escritos de Ruy Fausto, sempre os considerei um estímulo decisivo ao pensamento crítico. Ruy nos fará muita falta, como intelectual instigante e como ser humano brilhante e jovial.

Jorge Grespan é professor no Departamento de História da USP.

O sentido da informalidade, por Lincoln Secco

O Sentido da Informalidade

 

Lincoln Secco

 

O fim da Nova República (2016), as incertezas de um governo neofascista (2018) e o ataque ao pensamento crítico nos trazem uma pergunta difícil: qual a função do debate historiográfico, em particular, e o intelectual em geral nesta conjuntura?

A extensa pauta que nos é imposta a cada dia pelo inimigo nos atordoa. Mas é provável que assim como nem 1964 o problema estratégico fundamental que incomoda conscientemente ou não militantes, intelectuais e dirigentes sindicais e de partidos é a indefinição de um sujeito social da mudança almejada. Quem pode atrair as forças políticas que podem superar o impasse brasileiro? Em torno de que classe ou grupo social podem gravitar as organizações existentes?

A nova classe trabalhadora se tornou um desafio para a esquerda no século XXI: a terceirização, o uso de aplicativos, o GPS, automação dos serviços e a robotização nas fábricas criaram uma massa de desempregados permanentes ou sub empregados intermitentes: uma “massa sobrante”, “uma população que está sendo descartada pela autonomização total do processo econômico”[i]. Resíduo social, precários [ii], subproletários[iii], subalternos, excluídos, marginalizados são termos que transitam pelo vocabulário da Sociologia e dos movimentos sociais.

Na tradição marxista já se podia contar com a estratificação criteriosa feita por Marx em O Capital acerca daqueles setores que ele identificou abaixo do proletariado, particularmente a população estagnada “caracterizada pelo máximo de tempo de serviço e o mínimo de salário”[iv]. Foi no âmbito do marxismo que a intelectualidade latino americana inaugurou o debate conceitual sobre a marginalidade[v].

A historiografia brasileira possui uma contribuição própria a este debate. A informalidade, a rotatividade, a fluidez, a sazonalidade e a exploração sem limites são heranças coloniais que se reproduziram até o presente.

 

Historiografia

Oliveira Viana já havia se detido sobre o setor populacional que não se enquadrava nas categorias fundamentais da economia (escravos e senhores): mulatos e mulatas, mestiços repululantes, desclassificados, agregados, forros carijós, vadios incorrigíveis, vagabundos, valentões de estrada, sicários assalariáveis, empreiteiros de arruaças, chusma, salteadores, pimpões, o caboclo valente, o cabra subversivo, o cangaceiro temível, o troglodita, o caçador bandoleiro, o rixento, o brigão, o valente dos engenhos e o mameluco. A fluidez e indeterminação do vocabulário escondiam, além do racismo, a impotência conceitual[vi].

Caio Prado Júnior foi leitor de Oliveira Vianna mas partiu das “formas inorgânicas” para elevar os “desclassificados”[vii]a um patamar teórico. Em tese defendida na Universidade de São Paulo em 1954 Dante Moreira Leite ressaltou que “como outros historiadores Caio Prado Júnior encontra os documentos sobre a população desocupada da colônia. No entanto, em vez de interpretar esse dado como consequência da decadência nos trópicos ou da degeneração do híbrido, mostra como o sistema da colônia conduziria fatalmente a esse resultado, pois praticamente não oferecia outra oportunidade para o trabalho livre”[viii].

Se no momento estrutural de sua análise Caio Prado desvincula a situação das classes de uma explicação biológica, no momento político em geral ele ignorou a participação ativa de pobres livres, indígenas (que ele considerava semi-civilizados[ix]), imigrantes italianos que ele achava mais rústicos e e menos exigentes que os suíços e alemães[x] e escravizados, os quais dividia entre os de cultura inferior[xi] e os provenientes do Sudão a que atribuía cultura elevada[xii].

Ele reproduziu, ainda que marginalmente, expressões racistas em sua obra. Seu método não lhe permitiu avaliar raça e classe como um par de opostos num mesmo ser social. Na própria época em que Caio Prado Júnior escreveu Mario de Andrade recorreu ao folclore a fim de não reduzir o preconceito de cor a uma questão de classe social[xiii]. E sabe-se hoje que a mudança da estrutura social e econômica não conduz ao fim do racismo[xiv].

Todavia, Caio Prado Júnior reconhece a participação negra no período final do movimento abolicionista ao citar as fugas em massa. E a todo momento registra o medo da elite senhorial de uma revolta[xv]. Diferentemente de Oliveira Vianna o preconceito na sua linguagem tinha origem cultural e não biológica e o núcleo racional da sua teoria era anti racista[xvi].

Seu foco era o momento estrutural donde ele derivou o comportamento das classes. O proletariado (industrial) surgiu para ele não a partir dos imigrantes europeus que se destinavam às fazendas de café, mas nos centros urbanos e da “população marginal”; “pobre, mas livre”; “sem ocupação fixa e meio regular de vida”; que não pertencia ao “binômio senhor e escravo”; composta pelo “desajustado”, “desocupado, de vida incerta e aleatória”[xvii]. Tanto na colônia quanto na fase nacional essa mão de obra de “baixo preço” vinculou-se ao setor secundário, portanto intermitente e sujeito sempre ao principal (agrário-exportador)[xviii]. Obviamente como trabalhador livre o negro submeteu-se mais que os brancos ao novo “conjunto de práticas disciplinadoras” que o enquadravam após a abolição[xix].

Aquele contingente populacional “socialmente indeciso”, que vegetava nas solidões do imenso território brasileiro e perambulava de uma região a outra hauria sua condição desagregada dos ciclos da economia exportadora, das suas crises, da inconstância das atividades de subsistência e, por fim, da própria forma de incorporação da colônia ao capitalismo comercial.

Às pessoas livres ou libertas restavam a prostituição, ofícios mecânicos[xx], alguns serviços domésticos, os trabalhos de construção, transporte e, particularmente, as tropas de repressão e policiamento. Quando não o crime.

Nelson Werneck Sodré havia tratado do surgimento das camadas  médias, da estreiteza do mercado de trabalho e das origens do operariado a partir das “sobras que a agricultura atira às cidades”, parcelas da classe média sem perspectivas e imigrantes[xxi].

Foi Alberto Passos Guimarães quem percebeu melhor do que Caio Prado que era preciso ir além do registro da origem da pequena propriedade no processo imigratório que só trazia como produto ideológico a suposta “largueza de visão das classes dominantes”. Isso servia para “apagar da História a longa e obstinada batalha que os elementos geradores da classe camponesa tiveram que travar contra seus inimigos”. Era imperioso “levar em conta a  anterior etapa de gestação” a partir da “multidão de trabalhadores livres miseráveis, agregados e semi-proletários mantidos como mão de obra de reserva nas proximidades do latifúndio”. Na esteira de Miguel Costa Filho ele se deparou com a produção artesanal de cachaça em engenhocas e molinetes, mas foi além e vislumbrou na documentação o vínculo entre a embriaguez de escravizados e as desordens temidas pela coroa portuguesa. Uma inusitada forma de resistência, portanto.

O essencial é que destacou a ”dinâmica da luta de classes” entre o “trabalho e a aristocracia territorial” (na  expressão que retirou de Rocha Pombo). Ele atribuiu a gênese do camponês tanto às condições objetivas de miséria, exclusão da terra e endividamento quanto ao conflito. Sem alternativas os  pobres precisaram se aquietar sob a “proteção” do senhor ou vagar sem destino pelos campos e cidades. O acordo e acomodação são para o autor fruto das derrotas e da necessidade de sobrevivência. Ou seja, só se negocia depois do conflito ou da ameaça: “Foram precisos três séculos de ásperas e contínuas lutas, sangrentas muitas delas, sustentadas pelas populações pobres do campo contra os todo poderosos senhores da terra para que por fim, a despeito de tantos insucessos, despontassem na vida brasileira os embriões da classe camponesa”[xxii].

Combinando resistência e acordo, Ciro Flamarion Cardoso chamou atenção para a brecha camponesa. As roças independentes e as “atividades informais dos escravos” por ele destacadas permitiram redesenhar a vida social em sua complexidade com “expedientes acomodativos” que concorriam para a estabilização das tensões sociais[xxiii].

Passos Guimarães e Werneck Sodré foram praticamente ignorados pela historiografia acadêmica (com as exceções de praxe) e quando apresentados foram logo retirados da cena principal porque consideraram o latifúndio “feudal”. A simples menção a esta palavra já era motivo para sua exclusão de qualquer debate. Mesmo Jacob Gorender[xxiv], que escreveu à margem da academia, contribuiu para isto sem ao menos perguntar por que, a despeito daquela incorreção, produziram obras de inegável valor historiográfico.

Em geral podemos encontrar nos historiadores marxistas brasileiros não só uma abordagem sistêmica, estrutural e que relevou os grandes processos históricos, mas também formas de resistência coletiva e anti-sistêmicas[xxv]. Ao partir das relações de produção coloniais eles revelaram formas internas com mais detalhes. Mas não atentaram para o fato de que nos países centrais é que a análise marxista naturalmente partia de dentro para fora pois ali estava o núcleo dinâmico da expansão capitalista. Isto explica que lá se tenha produzido um debate teórico de relevo sobre a transição do feudalismo ao capitalismo. Mas aqui não havia “transição” e sim uma empresa de conquista e a nacionalização do debate gravitou em torno da transplantação do feudalismo português sobre a escravidão. Naquela chave de leitura as relações de propriedade não correspondiam às de produção. O real era saturado por uma idealização e não pelas fontes[xxvi].

Roberto Simonsen concebeu a história econômica do Brasil a partir dos ciclos de exportação e de suas relações externas mas lhe faltava instrumental teórico para uma apreciação de conjunto daquilo que Caio Prado denominou como antigo sistema colonial.

O historiador na periferia só podia aproximar-se da totalidade de fora para dentro, apanhando a lógica do sistema através da circulação do capital, pois ela fornecia o sentido da produção colonial. O deslocamento do foco de análise permitiu a Caio Prado Júnior perscrutar os desajustes na engrenagem colonial, ou seja, aquilo que girava em falso: o inorgânico.

A afirmação de Roberto Schwarz de que antes do seminário Marx da Universidade de São Paulo o marxismo (com a exceção de Caio Prado) estaria “confinado num universo intelectual precário” e sem “relações aprofundadas com a cultura do país”[xxvii] é errada como se vê pelo extenso e qualificado debate historiográfico brasileiro.

Todavia, os historiadores marxistas não dispunham de uma massa de monografias de base que a universidade produziu mais tarde; nem contavam com o acesso, o tempo e as condições de trabalho intelectual para compulsar uma ampla mole documental em arquivos, senão excepcionalmente. O avanço da investigação empírica era fundamental para refinar e aprofundar o conhecimento sobre a população livre e pobre, bem como sobre a resistência à escravidão.

O risco era afogar-se na empiria e na ausência de qualquer noção de processo histórico. O prêmio seria encontrar o universal no particular e descrever estruturas sem sacrificar as individualidades de carne, osso e espírito que produzem a história.

 

Antecedentes Uspianos

Maria Sylvia de Carvalho Franco, cuja tese foi defendida na USP em 1964, retratou o cotidiano violento que ela encontrou nos processos judiciais e atas da Câmara de Guaratinguetá[xxviii]. Roberto Schwarz, por sua vez, mostrou que os pobres livres compõem toda uma classe social cujo acesso às mercadorias depende do favor, sendo o agregado a sua caricatura[xxix].

Nos anos 1970 Ecléa Bosi publicou dois livros sobre as leituras de operárias e da memória social da velhice: dois grupos fragilizados e de vida precária[xxx]. Ainda que tenha tratado de uma classe trabalhadora formalizada, ela recortou o gênero e a condição etária, dando relevo a formas de opressão como o machismo e o esquecimento da velhice. A condição de trabalhador(a) tem centralidade na memória dos idosos e idosas que ela entrevistou[xxxi].

A historiografia de modo sub reptício reagiu às pesquisas sociológicas uspianas sobre a escravidão, como as de Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni. O atraso da historiografia em relação à sociologia sobre a escravidão explica-se porque a História já contava com uma tradição que remonta aos institutos históricos e à historiografia nacional inaugurada por Varnhagen. As cadeiras de História foram preenchidas por eruditos locais sem preocupação teórica e metodológica. Como afirmou Carlos Guilherme Mota a criação da Faculdade de Filosofia em 1934 favoreceu mais a Sociologia, Geografia, Antropologia e Economia[xxxii]. Obviamente o julgamento se restringe à universidade pois a historiografia marxista persistiu na área incidência do Partido Comunista, como vimos acima. Deslocado[xxxiii] entre os “dois mundos” Caio Prado Júnior teve um papel único[xxxiv], mas certamente isso não se explica por ele ter combinado o marxismo com a “acumulação intelectual de uma grande família do café”[xxxv].

A partir dos anos 1960 na USP Fernando Novaes começou a desenvolver a ideia caiopradiana de antigo sistema colonial. O próprio posto de observação de Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado e que ele herdou de Capistrano de Abreu era o momento da crise daquele sistema: o início do século XIX. Mas não se havia avançado nas formas de inserção dos indivíduos e classes sociais na economia colonial.

 

Três Historiadoras Pioneiras

Nos anos 1980 três importantes historiadoras se voltaram para a desclassificação social a que eram submetidos segmentos da população brasileira. Obviamente que passo ao largo de outras contribuições decisivas da virada dos anos 1970 para 1980[xxxvi].

Maria Odila Leite Silva Dias, Laura de Mello Souza e Emilia Viotti da Costa afirmaram que não se tratava apenas de uma exclusão social, mas também historiográfica, embora isso hoje possa ser nuançado pelo maior conhecimento de memórias de trabalhadores, historiadores comunistas e socialistas, estudiosos autodidatas etc. A primeira mostrou a dinâmica do trabalho das quitandeiras no centro de São Paulo no século XIX; a segunda exibiu os desclassificados nas fímbrias do ciclo do ouro; a terceira escreveu ensaios de cunho metodológico em que ressaltou a presença da mulher, do negro e da abordagem feminista[xxxvii], mas condenou a troca do reducionismo econômico pelo cultural[xxxviii].

As vendedoras de rua sobreviveram à margem da história na São Paulo oitocentista para Maria Odila Dias[xxxix]; Laura de Mello e Souza pesquisou toda aquela população que no vocabulário das Minas Gerais setecentistas eram os vadios, a canalha indômita, ciganos, mulatos, negras de tabuleiros, forros, pardos, libertos, feiticeiras etc. Eram os protagonistas da miséria, recrutados à força pelas milícias coloniais para reprimir os não recrutados[xl]. Oliveira Vianna já havia escrito que os desclassificados eram também o capanga do potentado local e o guarda, o infante e o soldado da milícia. Como nas polícias oficiais e milícias ilegais até os dias de hoje.

Havia profissões assalariadas nos engenhos e inúmeros intermediários que pesavam e encaixotavam o açúcar ou encarregavam-se da venda e embarque do produto. Até cirurgiões que sangravam negros e administravam mezinhas podiam ter emprego fixo. Mas todos estavam submetidos à desqualificação social do trabalho: “sem possibilidade de ascender na escala  social e pressionado a ombrear-se aos escravos, restava ao homem livre a opção de ser vadio”, nas palavras de Vera Ferlini[xli].

Essa foi a escolha do protagonista do conto de Machado de Assis Pai contra Mãe. Ele retrata perfeitamente o dilema de um pobre livre de ocupação inconstante que se vê entre a entrega de um bebê recém nascido à roda dos expostos e a caça a uma mulher grávida. É o retrato da impossibilidade da universalização da condição humana sob a escravidão. A indecisão, resolvida pelo acaso de encontrar a negra fugitiva cuja captura renderia uma recompensa, desvela a própria situação daqueles grupos fronteiriços ora integrados ora marginalizados, sempre em busca de uma ascensão via a seleção que permitia se tornar agregado. Mas o favor de uma família estabelecida não removia a instabilidade.

A pobreza gerava simultaneamente disputas e solidariedades, estas no nível do parentesco e da vizinhança. Numa sociedade paupérrima como a paulista dos setecentos, v.gr., em que a miséria dissolvia o distanciamento social, os editais da Câmara procuravam fortalecer as distinções inscritas na cor da pele de negros, mulatos e carijós[xlii]. A sociedade colonial tinha, portanto, múltiplas hierarquias além daquela baseada na propriedade: a da cor, pureza do sangue, ideal de fidalguia etc.

A História (mas também os estudos literários) revelaram grupos marginalizados que por outro lado não estavam num mundo apartado, fora da cultura global. O trabalho livre urbano concorria com o de escravos de ganho e as ligações entre livres, escravizados e senhores fluíam em inúmeras formas. Escorriam pelos interstícios sociais.

Essa população era permanentemente submetida à violência vertical (repressão dos mandões locais ou do Estado) ou horizontal, nas relações de vizinhança ou de trabalho eventual. Para Maria Sylvia de Carvalho Franco a dominação aparecia quase como inescapável, pois a sujeição seria suportada como benefício, a tal ponto que o indivíduo não existiria como ser social, sobrando-lhe quando muito a revolta pessoal[xliii]. Uma leitura que foi matizada pela historiografia.

Para Maria Odila não houve nenhuma possibilidade de ruptura, senão a “continuidade estrutural da pobreza e do desemprego” [xliv], mas ela resgatou a subjetividade das mulheres no quotidiano. Nele emerge a urdidura de tensões entre idosas autoritárias e mulheres amancebadas e desordeiras; entre homens violentos e suas mulheres; esposas rejeitadas e as escravas que se tornavam amantes dos seus maridos; viúvas pobres; mulheres sós; a mulher macho[xlv]; as libertas; as escravas a ganho[xlvi]… Em 1804 e 1836, 40 e 36% dos fogos urbanos eram constituídos por mulheres sós, chefes de família, sobretudo solteiras (em geral brancas ou pardas)[xlvii].

O cotidiano não é o oposto rotineiro de uma vida privada que resguarda a intimidade. Não existe na colônia essa separação rígida. Para Maria Odila as tensões domésticas eram sentidas pelas mulheres como a mediação dos conflitos sociais. A violência que sofriam de maridos, amantes ou senhores não aparece desconectada de processos gerais como a derrocada da escravidão urbana e o empobrecimento das pequenas proprietárias de escravos. A historiadora encontra as marcas estruturais nos processos de divórcio, dívidas, inventários e testamentos. As mulheres “canalizavam o sistema de dominação em crise”[xlviii]. A subjetividade não está isolada do processo de urbanização da cidade de São Paulo entre fins do  século XVIII e as vésperas da abolição.

Laura de Mello e Souza fez um estudo profundo, documentado e teoricamente consistente em diálogo com a historiografia europeia e com os estudos sociológicos sobre a marginalidade. Ela apresentou uma capacidade de análise mais penetrante dos indivíduos enquanto portadores de uma universalização bloqueada[xlix].

A professora Laura aprofundou a leitura de Caio Prado Júnior, a quem se referiu explicitamente em sua obra. Para ela é como se as formas de consciência coletiva surgissem no horizonte histórico em decorrência de uma condição estrutural comum, mas em seguida eram neutralizadas[l] por uma forma de inserção econômica inconstante, geograficamente dispersa e politicamente subordinada.

Como a consciência não é externa ao ser, ela se inscreve para o indivíduo na ordem da curta duração, do aqui e agora ao mesmo tempo que seu ser social está na ordem da longa duração. A imediaticidade confere a aparência da descontinuidade e oculta sua persistência no tempo.

Laura de Mello e Souza encontrou em meio à opressão da época colonial “formas intermitentes e (…) de consciência de grupo” ao lado dos “muito fatores que agiam (…) desmantelando as solidariedades e dissolvendo a consciência”[li]. Uma “camada social onde os papéis dos indivíduos eram transitórios e flutuantes, onde os homens pobres livres entravam e saiam da desclassificação” era a norma no período colonial. Mas “havia muitas características comuns entre eles: a cor da pele – negra,  parda, vermelha, acobreada, branca às vezes – o nascimento bastardo, a insegurança do cotidiano, o pânico permanente ante a justiça atenta e rígida, a itinerância, os concubinatos…”[lii].

Embora tratassem de períodos, regiões e objetos diferentes, aquelas historiadoras  traziam à luz um mesmo problema de longa duração. Elas combinaram a macro e a micro-história na esteira de Nathalie Zemon Davis e Carlo Ginzburg[liii], cujos livros elas indicavam em seus cursos. Mas foi Emilia Viotti da Costa quem sistematizou aquela postura teórica e metodológica em alguns artigos, conferências e livros escritos nos anos 1980.

Em 1982 Emilia Viotti voltou à USP momentaneamente. Ela tinha sido excluída em 1969 pela Ditadura e lecionava nos EUA. Numa conferência ela analisou duas coletâneas de documentos do movimento operário. Uma de Edgard Carone, seu antigo colega da USP pioneiro no estudo sistemático do período republicano; a outra de P. S. Pinheiro e M. Hall, da Unicamp, ponta de lança da nova História do trabalho.

Curiosamente as duas obras ofereciam para Emília Viotti uma face nova da historiografia sobre a classe trabalhadora, agora não só voltada aos imigrantes, mas também aos pretos e às mulheres[liv].  Para ela “nenhuma História das classes trabalhadoras digna de respeito pode ser escrita hoje sem incorporar a mulher, não apenas aquelas que trabalham no setor industrial mas também as esposas e outros membros da família que trabalham em empregos temporários no setor informal”[lv].

A vida cotidiana é a esfera fundamental da existência de qualquer pessoa. Nela se vive, sofre, alimenta-se, sente-se e se reflete. Ali estão o pensamento e a ação. Só não há teoria e, portanto, práxis[lvi]. No cotidiano vigora o “caráter imediato da experiência”[lvii] e por isso a História não pode apenas reproduzir a voz do oprimido.

Emilia Viotti não se limitou a afirmações de princípio ou apenas à constatação de uma virada historiográfica. Naquele mesmo decênio de 1980 ela pesquisou a revolta de escravizados na Guiana tentando inserir os vários discursos e subjetividades locais no interior das estruturas econômicas mundiais[lviii]; uniu os diferentes relatos às curvas de preços do açúcar e às mudanças gerais do capitalismo. Em conferência realizada na USP sobre aquela revolta afirmou que era preciso ir além do discurso do oprimido ou do opressor porque a subjetividade deles era constituída por condições objetivas[lix].

Em 1988 ela publicou um opúsculo de divulgação historiográfica sobre a abolição. Na maior parte da obra segue o mesmo esquema da História Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior, embora não o cite. A pressão inglesa, o fim do tráfico, o aumento do investimento na aquisição inicial do escravo devido ao aumento do preço; mudanças na composição demográfica da população livre e escravizada e nas relações de produção; o surto econômico do café; a opinião pública favorável à abolição etc. Como Caio Prado que qualificou o comportamento escravo de “passivo”[lx] até a campanha abolicionista, ela afirmou que “a maioria dos escravos parece ter se acomodado bem ou mal à escravidão. Se não fosse assim a escravidão teria sido destruída como instituição muito antes do que foi”[lxi].

Sua preocupação com a subjetividade do escravizado levou-a sopesar a rebeldia e a acomodação, mas com predominância da segunda característica[lxii]. Para a segunda metade do século XIX ela documenta as ações coletivas anti-escravistas[lxiii] e registra a participação das “classes subalternas”: mulheres, homens pobres livres, os jangadeiros do Ceará, imigrantes, ex-escravizados e, como Caio Prado Júnior, confere relevo às fugas em massa das fazendas nos últimos anos da escravidão[lxiv]. Ainda trata de literatos, jornalistas, parlamentares e até das divisões entre fazendeiros.

Mas sua contribuição é especialmente metodológica. Ao apresentar a biografia dos abolicionistas Luiz Gama, Antonio Bento e Joaquim Nabuco oferece uma aula de análise histórica. A diversidade de origem, classe social e cor dos três converge com as condições objetivas nas quais atuaram: econômicas, geracionais, ideológicas. Vivenciaram um discurso reformista que reagiu às transformações econômicas de sua época; sofreram a conjuntura do ostracismo liberal de 1868[lxv] que os levou a outras formas de luta no jornalismo, nos comícios, quermesses, palestras etc; todos mantiveram uma relação ambígua com as oligarquias no poder entre a aposição a elas e o apadrinhamento.

Embora estivesse aludindo a figuras de proa do movimento abolicionista seu intuito  era encontrar um método geral que desse conta de “por que alguns indivíduos se tornaram abolicionistas e outros não” sem emaranhar-se nos motivos pessoais que se perdem “nas múltiplas circunstâncias da vida de cada um”. Comparando três biografias sucintas ela pode entender “algumas determinações gerais que explicam o seu comportamento”[lxvi].

Mas sem dúvida o tom que ela procurou dar ao seu livro, escrito poucos anos antes do centenário da abolição, só aparece nas páginas finais em que ela destacou que o papel “mais importante foi aquele desempenhado por um sem número de indivíduos brancos, negros, mulatos, livres e escravos que lutaram anonimamente pela abolição”[lxvii].

 

Atualidade de um Debate Historiográfico

Meu escopo não foi debater o conteúdo das obras e autoras aqui citadas à luz de novas pesquisas, posto que me faltaria especialização nos estudos sobre escravidão, restando-me tão somente a experiência que tive como aluno ou interlocutor político de muitas das pessoas aqui citadas.

As três professoras da Universidade de São Paulo produziram seus trabalhos num momento de acelerada urbanização; esgotamento da ditadura; e de surgimento de organizações populares que buscavam representar também os desclassificados sociais. E não é casual que todas as autoras acadêmicas aqui citadas fossem mulheres, embora não haja nenhum negro[lxviii].

Em 1980 o Partido dos Trabalhadores emergiu não apenas da classe operária do ABC paulista, mas de uma miríade de iniciativas autônomas de seringueiros, sem terra (o MST surgiu em 1984), domésticas[lxix], ambulantes, trabalhadores rurais e toda uma gama de radicais das classes médias[lxx]. Aquela classe trabalhadora nunca tinha deixado de ser em grande medida informal, precária e economicamente insegura. Como aquela experiência política foi possível é um desafio à pesquisa histórica.

Nos decênios seguintes surgiram os trabalhos de Silvia  Federici[lxxi] e Roswitha Scholz[lxxii]. A condição da periferia sempre foi a de funcionar como mercado exterior ao modo de produção capitalista do centro[lxxiii] e isso se estendeu para os corpos. Aquelas autoras demonstraram que os corpos de mulheres[lxxiv] e escravizados também foram colonizados e que a acumulação de capital não acontece sem o trabalho reprodutivo da mulher, a degradação do meio ambiente, e a exploração colonial. Com a mercantilização, o trabalho feminino de cuidado, gratuito e invisível, tornou-se mais visível[lxxv]. Isso reforçou a importância das atividades consideradas improdutivas do ponto de vista imediato do capital[lxxvi].

No Brasil a nacionalização do mercado de trabalho não ocorreu senão depois da Revolução de 1930[lxxvii]. Naquele ano se instituiu a lei dos 2/3 de trabalhadores nacionais nas empresas, o que permitiu a integração de negros na indústria. As mulheres constituíram prioritariamente a população desclassificada em serviços domésticos, por exemplo[lxxviii]. Nos decênios seguintes isso não mudou. Em 2019 o IBGE[lxxix] estimou em 41,4% a taxa de informalidade no mercado de trabalho[lxxx].

Até os anos 1980 era comum a dispersão ou prisão de grupos de desempregados na Praça da Sé em São Paulo com base num Decreto-Lei de 1941 conhecido como lei da vadiagem. Tanto quanto na colônia, quando se temia o ajuntamento de pretos nas ruas e eles só circulavam mediante autorização prévia. O controle via telefone móvel e câmeras de vigilância tem lá seus antecedentes.

Também a escravidão, embora residual, persistiu no país. A Comissão Pastoral da Terra calculou que o nordeste forneceu a maioria da mão de obra escrava no Brasil entre 1995 e 2005. O escravizado é morto a pauladas e tiros pelo “gato” (contratador de mão de obra, representante do fazendeiro) tanto quanto o negro que fugia era caçado e dado aos cães do capitão do mato[lxxxi]. Essa população “desclassificada” se localiza no século XXI entre o assalariamento e a escravidão moderna,  por vezes integrando a disposable People do sociólogo estadunidense Kevin Bales[lxxxii]. As famílias pobres de lavradores negros de Goiás[lxxxiii]; o bóia fria migrante; o seringueiro “cativo” do Acre[lxxxiv] convivem agora com o “ciclista” do rappi do centro de São Paulo e o que aguarda 600 reais do Estado durante a epidemia de 2020[lxxxv]. A submissão ao barracão (que gera o aprisionamento por dívida na fazenda) é muito mais dura, mas a o do aplicativo não é um paraíso como demonstrou o filme Você não Estava Aqui de Ken Loach.

Sem negligenciar o impacto da Revolução Informática no trabalho, podemos dizer que ele se sobrepõe a velhas formas inorgânicas, a mentalidades herdadas do escravismo, ao racismo e aos obstáculos à universalização dos interesses da classe trabalhadora.

Mais do que na colônia generalizou-se uma vida comum que é a “correria”, a violência, o vínculo fugaz, a pobreza e a incerteza do dia seguinte. Mas essa condição compartilhada não se traduz em solidariedades e organizações perenes. A universalidade da condição humana pode ser declarada, mas dificilmente praticada porque não há nexos orgânicos que sustentem materialmente um esforço comum de construção de uma economia nacional.

 

Conclusão

Mas além dos impasses a historiografia nos permite desvendar possibilidades, brechas, alternativas, estratégias de sobrevivência, organização (mesmo intermitente) e revolta. Antes de tudo, nos lembra que já tivemos um regime mais feroz, cruel e duradouro do que qualquer um que possamos vivenciar em nossas existências individuais: a escravidão persistiu por três séculos.

A recorrência da luta, mesmo fragmentada, foi vital para derrubar o regime escravista. Foi importante apoiar todas elas mesmo quando fracassavam; as classes e raças subalternas tinham interesse objetivo na luta, mas nem todas a mesma consciência e nem agiam no mesmo ritmo; na ação cotidiana muitas pessoas pobres percebiam a relação de sua condição de classe, raça ou gênero com processos gerais, mas foi preciso acumular muitas frustrações individuais para que se buscasse uma alternativa política; as alianças entre camadas médias, pessoas pobres livres e escravizadas foi rara e difícil, mas quando ocorreu foi decisiva e um exemplo disso foi o abolicionismo.

O “horizonte das contestações” nunca está pré definido. Se uma “teoria e prática da contestação na colônia”, nas palavras de István Jancsò, diz respeito na maioria das vezes a sedições que “não ultrapassaram o plano imediato das tensões, isto é, dos desdobramentos na curta duração das contradições fundamentais do sistema contra o qual se debatia”, ela também nos desvela “a prática futura” que viria a resolver, noutro contexto histórico, a crise do antigo sistema colonial[lxxxvi].

A ação organizada criou uma opinião pública favorável aos escravizados e desclassificados, conferiu ao seu protesto individual legitimidade crescente, deu-lhe um sentido e ampliou a viabilidade das suas revoltas coletivas; houve questões objetivas que estavam fora do alcance do movimento como o fim do tráfico e as mudanças nas condições de produção, mas as vitórias no parlamento também contribuíram para onerar o comércio inter provincial e desmoralizar a escravidão; a campanha abolicionista foi plural e unia tanto os que a reduziam a uma reforma legislativa quanto os que usavam métodos ilegais; ela nos ensina que tão importante quanto a ação reformista parlamentar foi a difusão da causa em quermesses, arrecadação de recursos, palestras, publicações etc. Por fim, aquilo que passou à História como uma reforma desde cima só foi possível com a ação de massa a partir de baixo por organizações radicais independentes em ações ilegais e clandestinas.

O movimento da política deve ser o do abstrato ao concreto. Atuar no quotidiano sem o proselitismo de fórmulas ideológicas. Encontrar a palavra de ordem certa, aquela que traduz a multidão de experiências empíricas diferenciadas, a partir da própria experiência. Mas sem negar o papel imprescindível da teoria, do conhecimento do passado e da organização em sucessivas escalas geográficas de atuação. O conhecimento histórico não substitui o aprendizado que só se obtém na prática militante, mas este sozinho é insuficiente. Simplesmente acionar grupos subalternos não leva necessariamente a um horizonte progressista[lxxxvii].

A atividade, mesmo individual ou de pequenos grupos, é mais efetiva se estiver armada com a teoria produzida em primeiro lugar nas próprias organizações de esquerda e também fora delas. Uma miríade de pequenos gestos que se repetem também contribui para esboroar uma forma de dominação e modifica questões objetivas.

O sentido da informalidade não é novo como revela o debate historiográfico, mas ela se tornaria não um resíduo passado e sim um destino no exato momento em que aquela historiografia apareceu. A classe operária jamais conseguiu espalhar suas conquistas para toda a população porque havia uma imensa reserva de força de trabalho no campo até o golpe de 1964 e nas periferias urbanas quando emergiu a Sexta República.

Mal se configurou um mercado de trabalho formal entre 1930 e 1980. Antes não havia e hoje não sabemos se o que existiu foi apenas parte de um ciclo único do capitalismo global. Se no polo dinâmico formalizado  há a luta do “trabalhador coletivo” por direitos que depois se individualizam, na informalidade vigora a luta de indivíduos cuja conquista se materializa coletivamente fora da relação salarial[lxxxviii] e se espraia[lxxxix].

Antonio Gramsci cita em seus Cadernos do Cárcere uma história de Tácito: um senador propôs que todos as pessoas escravizadas vestissem um uniforme. O Senado Romano recusou a proposta porque elas poderiam se dar conta de que eram iguais entre si e que formavam a maioria da população. Não é tão difícil reconhecer a informalidade que nos uniformiza. Difícil é conferir-lhe o sentido.

Lincoln Secco é professor no Departamento de História da USP.

[Este artigo foi originalmente publicado no blog A terra é redonda (eppur si muove)https://aterraeredonda.com.br/o-sentido-da-informalidade/]

 

[i]       Arantes, Paulo. “Entrevista”, in: Humanidades em Diálogo, USP, 2017. Disponível em: file:///sysroot/home/trocken/Downloads/140535-Texto%20do%20artigo-274319-1-10-20171113.pdf.  Acesso em 23/4/2020.

[ii]      Embora formalizada, essa categoria concentrou no Brasil particularmente as filhas de empregadas domésticas não brancas. Desde 2005 houve ocorrência de greves no setor. Braga, Ruy. “Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: Um olhar a partir da indústria do call center”. Revista Crítica de Ciências Sociais n.103, Coimbra maio 2014. Vide também Sá, Guilherme C. Proletarização, precarização e empresariamento na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (1995-2015): o neoliberalismo forjando a crise da República e privatização do Estado, USP, mestrado, 2019.

[iii]    Singer, André. Os Sentidos do Lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[iv]     Marx,  K. H. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983, V. I. T. 2, p. 208.

[v]      Nun, Jose. “Superpopulação Relativa”, in: Pereira, Luiz (org). Populações Marginais. São Paulo:  Duas Cidades, 1978.

[vi]     Vianna, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília:  Senado Federal, 2005. Os termos estão espalhados pelo livro.

[vii]   Prado Júnior, Caio. Formação  do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, pp. 279 e 284. Sobre o autor consultem-se: Pericás, Luiz Bernardo. Caio Prado Júnior: uma biografia política. São Paulo: Boitempo, 2016. Ricupero, Bernardo. Caio Prado Jr e a Nacionalização do Marxismo no Brasil. São Paulo: Editora: Ed 34, 2000.

[viii]  Leite, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Pioneira, 1983, p. 349.

[ix]     Prado Júnior, Caio. História Econômica do Brasil, p. 220.

[x]      Id. ibid., p.203.

[xi]     Se neste caso o significado é óbvio, em geral o termo inferior se refere a uma posição social, como em  classes inferiores.

[xii]   Id. Ibid., p. 188.

[xiii]  Andrade, Mario. Aspectos do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2019, p. 103. A  ambiguidade do racismo brasileiro foi objeto de um clássico estudo: Nogueira, Oracy. Tanto Preto quanto Branco. São Paulo. T.A. Queiroz, 1985. Veja-se também: Schwarcz, Lilia. Nem preto nem branco muito pelo contrário. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[xiv]  Mbembe, Achile. Crítica da Razão Negra. 2. ed. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017, p. 72.

[xv]    Prado Júnior, Caio. História Econômica do Brasil, p. 195.

[xvi]  Sobre os escravizados destacou o “baixo nível intelectual”, “privação de direitos”, “isolamento nos domínios rurais”, a língua, a disciplina sem limites imposta pelos senhores e “rivalidades tribaes” que impediam sua participação política. Mas ele previa sua futura transformação de “classe em si noutra para si”. As camadas médias não eram para ele uma classe e sim “aglomerados de indivíduos”. Prado Júnior, Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933, pp. 120-121.

[xvii] Prado Júnior, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Círculo do Livro,1986, p. 213.

[xviii] A preeminência do café na pauta de exportações durou mais de um século e suas divisas permitiram pagar os royalties, as remessas de lucros e importação de tecnologia e maquinário, mesmo já defasados no centro. Mas como a economia periférica funciona como o Departamento II (matérias primas) da central (Mandel), ela jamais logrou autonomizar completamente a reprodução interna do Departamento I (meios de produção). Para Caio Prado Júnior a indústria é secundária não por seu peso na produção nacional, mas por não alterar o sentido da economia que visa exportar. Desde a colônia o Departamento I era dependente do exterior porque o produtor direto era sequestrado na África e contabilizado como capital fixo do ponto de vista da circulação. Mas do ponto de vista da produção era variável e acrescentava valor (só a desatenção às formas que permite falar erroneamente de mercado de trabalho). Ao não se reconhecer a humanidade do trabalhador tendia-se a tratá-lo como máquina que devia ser desgastada até a morte e substituída. Isso também impedia qualquer revolução técnica, já que era o capital comercial quem ditava a dinâmica da produção desde o apresamento da mão de obra até a venda do produto no mercado externo. O escravizado não era sustentado pelo senhor, já que ele reproduzia o valor da sua força de trabalho no eito. E envelhecido podia ser morto ou expulso, sem custo. Isso explica a resistência ao abolicionismo até 1888 e hodiernamente o ataque à previdência (assim a força de trabalho pode ser descartada sem custos ao fim de sua vida útil para o capital).

[xix]  Em 1989 uma historiadora o verificou ao estudar o caso de ex-escravos das charqueadas riograndenses. Pesavento, Sandra J. “Trabalho livre e ordem burguesa. Rio Grande do Sul – 1870-1900”, Revista de História, n.120, p. 135-151, USP, jan/jul. 1989.

[xx]    Florestan Fernandes lembrou que o número de colonizadores não era suficiente para transplantar à colônia todo tipo de gente pobre para os ofícios mecânicos. Vide: Fernandes, Florestan. Circuito Fechado. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1979, p. 40.

[xxi]  Sodré, Nelson Werneck. Introdução à Revolução Brasileira. 4ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978, p.53.

[xxii] Passos Guimarães, Alberto. Quatro Séculos de Latifúndio. 6 ed. 1989, pp. 105-119. A primeira edição é de 1963.

[xxiii] Machado, Maria Helena P. T. “Em Torno da Autonomia Escrava: Uma Nova. Direção Para a História Social da Escravidão”. Revista Brasileira de História. V. 8, n. 16, São Paulo, março de 1988. A autora não desconsidera que eram atividades residuais e diz ser necessário “deslindar o processo econômico e social que permitiu sua absorção pelo sistema escravista” (grifos meus).

[xxiv]         Sobre sua trajetória vide: Quadros, Carlos F. Jacob Gorender, um militante comunista: estudo de uma trajetória política e intelectual no marxismo brasileiro (1923-1970). Dissertação de mestrado, USP, 2015.

[xxv] O estudo marxista de Clovis Moura é exemplar a este respeito. Moura, Clovis. Rebeliões da Senzala. Quilombos. Insurreições. Guerrilhas. São Paulo: Zumbi, 1959. A orelha desta primeira edição informa que Caio Prado Júnior ressaltou o pioneirismo da obra e a importância considerável do tema.

[xxvi]         O debate sobre a propriedade sesmarial é longo e em boa medida ultrapassado.

[xxvii]        Schwarz, Roberto. “Um Seminário de Marx”, Folha de São Paulo, 8 de outubro de 1995. Essa opinião sem fundamento empírico em nada modifica o fato de se tratar aqui de um notável crítico. Já numa formulação puramente idealista e politicista encontramos a incrível condenação do movimento comunista brasileiro por falta de conhecimento da dialética… Vide: Konder, Leandro. A Derrota da Dialética. São Paulo, Expressão Popular, 2009. Contrariamente a essa leitura, entre inúmeras pesquisas já desenvolvidas cito duas a título de exemplo: Quartim de Moraes, João (Org). História do Marxismo no Brasil. Campinas: Unicamp, 2007. Vejam-se especialmente os volumes 2 e 3. Secco, L. A Batalha dos Livros: Formação da Esquerda no Brasil. São Paulo: Ateliê, 2018.

[xxviii]      Franco, Maria S. C. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Ática, 1974, p.14.

[xxix]         Schwarz, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 2012, p. 16.

[xxx] Bosi, Ecléa. “Narrativas Sensíveis sobre Grupos Fragilizados”; Entrevista in: Revista Fapesp, n. 218, São Paulo, abril de 2014. Ecléa Bosi foi aluna de Dante Moreira Leite que denunciava o descompromisso da intelectualidade até os anos 1950 com as “classes desprotegidas”.

[xxxi]         Bosi, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular: Leituras de Operárias. Petrópolis, Vozes, 1973. Bosi,  Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo, SP. T.A.Q., 1979.

[xxxii]        Mota, Carlos G. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 65.

[xxxiii]      Vide Rodrigues, Lidiane Soares. “Um Historiador Comunista”, USP, Estudos Avançados 23 (65), 2009.

[xxxiv]       Secco, L. Caio Prado Júnior. O sentido da revolução. São Paulo: Boitempo, 2008.

[xxxv]        Schwarz, Roberto. “Um Seminário de Marx”, Folha de São Paulo, 8 de outubro de 1995.

[xxxvi]       Uma historiografia voltada aos mundos do trabalho, da exclusão, da marginalidade, da loucura, bruxaria, prisioneiros, sonhos, sexualidade, quotidiano, mulheres, crianças etc, é não só por demais ampla e imprescindível na universidade brasileira. Aqui faz-se um recorte cronológico e institucional: o Departamento de História da Universidade de São Paulo na década de oitenta. Isso deixa de lado contribuições fundamentais. Basta pensar em João José Reis que escreveu sobre a revolta dos  malês em 1986. As historiadoras aqui citadas também foram marcadas pela obra de Caio Prado Júnior, um ex-aluno da seção de História e Geografia da USP. Além disso elas ressaltaram a subjetividade dos atores históricos subalternos sem romper com o momento estrutural da constituição do quotidiano, dos óbices à conscientização política e sem descurar da noção de processo histórico. Evidentemente obras dos anos 1980 (ou um pouco anteriores) de outros historiadores e historiadoras poderiam ser analisados, tais como: Mesgravis, Laima. A assistência à infância desamparada e a Santa Casa de São Paulo: a roda dos expostos no século XIX. Revista de História, V. 52 N. 103, v. 2, 1975. Moura, Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e menores no trabalho industrial: sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes, 1982; Silva, Marcos. Contra a Chibata – Marinheiros Brasileiros em 1910. São Paulo: Brasiliense, 1982; Sevcenko, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984. Pinto, Maria Inez Borges. Cotidiano e Sobrevivência: A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo 1890-1910, USP: Tese de Doutorado, 1985 (ela se tornou docente em 1989). Machado, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987 (mas ela não era ainda docente no período aqui em tela). Outra professora da USP já havia tratado do tema, mas antes da década de 1980: Queiroz, Suely Robles. Escravidão Negra em São Paulo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977. Nos anos 1990 e 2000 surgiram outros trabalhos de pesquisadores que se tornariam docentes no Departamento de História da USP.

[xxxvii]     Costa, Emilia Viotti da. Dialética Invertida. São Paulo: Unesp, 2006, p. 21. Para uma crítica da coletânea: David, Antonio. “Impasse teórico da historiografia segundo Emília Viotti da Costa”. Estudos Avançados, vol.30, n. 88. São Paulo, Set./Dez 2016.

[xxxviii]    Id. Ibid., p.13.

[xxxix]       Dias, Maria O. L. S. Quotidiano e Poder em  São Paulo no Século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 185.

[xl]     Souza, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro Graal, 1986, p. 84. A tese é de 1980 e a primeira edição é de 1982.

[xli]   Ferlini, Vera L.  A. Terra, Trabalho e Poder. Bauru: Edusc, 2003, pp. 180-200. Os feitores se desmediam nas torturas, estupros e assassinatos infligidos às suas vítimas escravizadas, como “dar couces” nas barrigas de grávidas (vide p. 186). A tese da Professora Vera Ferlini é de 1986.

[xlii]  Campos, Alzira Lobo de A. “A configuração dos agregados como grupo social: marginalidade e peneiramento (o exemplo da cidade de São Paulo no séc. XVIII)”. Revista de História, n. 117, USP, 1984.

[xliii] Franco, op. cit.,  pp. 104 e 106.

[xliv] Dias, op. cit. p. 185.

[xlv]  Id. Ibid., p. 86.

[xlvi] Estudos posteriores revelaram que em toda América portuguesa mulheres de várias condições marcavam o cotidiano no pequeno comércio. Em São Paulo em 1603 já se conhecia uma cigana dona de estalagem para “coisas de comer e beber”. Miranda, Lílian Lisboa. “Embates sociais cotidianos na São Paulo setecentista: o papel da câmara municipal e dos homens livres pobres. Revista de História, n.147, 2002.

[xlvii]         Samara, Eni M. R. “ A família negra no Brasil”. Revista de História, N. 120, p.27-44,jan/jul. 1989. Maria Luíza Marcílio apurou 40% de crianças ilegítimas entre as nascidas vivas  na cidade de São Paulo entre 1750 e 1850. A mãe solteira de filhos naturais (ilegítimos) era a forra, parda, agregada, viúva ou bastarda.

[xlviii]       Dias, op. ct., p.104.

[xlix] Alfredo Bosi mostrou essa mesma impossibilidade: a condição colonial, surpreendida na obra do Padre Vieira, desfazia o seu discurso universalista. Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo:  Companhia  das Letras, 1992, p. 148

[l]       Ao contrário das camadas populares as classes dominantes tiveram mais meios para elaborar sua própria consciência de raça e classe. Para manter seus privilégios dispuseram do monopólio dos meios de produção e difusão culturais. Um exemplo é a atuação de alguns lentes da Faculdade de Direito de São Paulo no século XIX que se mostravam perfeitamente conscientes de sua situação estrutural e dos valores de sua classe. Vide: Ayres, Vivian. Da Sala de Leitura à Tribuna: Livros e Cultura Jurídica em São Paulo no século XIX. São Paulo:  USP, 2019, p. 454. Uma ampla e inovadora leitura do período imperial em: Deaecto, Marisa. O Império dos Livros. São Paulo: Edusp, 2011.

[li]      Souza,  op. cit., p. 212.

[lii]    Id. Ibid., p. 212. Seu livro se tornou um clássico não apenas pelo pioneirismo, mas pela beleza narrativa.

[liii]   Ginzburg, Carlos. O Queijo e os Vermes. Trad. Maria B. Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Uma reconstituição histórica brilhante do processo inquisitorial contra um desconhecido moleiro do século XVI onde a cultura popular e erudita, escrita e oralidade, o cotidiano e a alta política se conjuminam numa  narrativa detetivesca.

[liv]   Costa, Emilia Viotti da. Dialética Invertida, p.155.

[lv]     Id. Ibid., p. 176.

[lvi]   Heller, Agnes. O Cotidiano e a História. Trad. C. N. Coutinho e L. Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972, p.45.

[lvii]  Chauí, M. Cultura e Democracia. 4 ed. São Paulo: Cortez, 1989, p.27.

[lviii] Costa, Emilia Viotti da. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.

[lix]   Id. A Dialética Invertida, p. 127.

[lx]     Prado Júnior, Caio. História Econômica do Brasil, cit, p193. Ele publicou este livro em 1945. Em 1933 tratou da “plebe amotinada” nas revoltas regenciais. Prado Júnior, Caio. Evolução Política do Brasil, pp. 120-121.

[lxi]   Costa, Emilia Viotti da. A Abolição. 8 ed. ampliada. São Paulo: Unesp, 2008, p. 114.

[lxii]  Mas cabe ressaltar com Vera Ferlini que era uma adaptação a um regime fundado no planejamento detalhado e na vigilância, tendo por “fio condutor do trabalho, a violência”. Ferlini, V. Op. cit., p. 213.

[lxiii] Suely Robles Queiroz e Maria Helena P.T. Machado coligiram informações que demonstraram a passagem qualitativa da criminalidade predominantemente individual na década de 1870 para a coletiva no  decênio seguinte. Insurreições tramadas ou efetuadas, criminalidade e fugas evidenciaram um estado de resistência permanente no século XIX. Apud Gorender, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, p. 159. Deixo de lado a importância deste trabalho do historiador Jacob Gorender  no qual defendeu que o abolicionismo fez as vezes de nossa revolução burguesa. Ele também dedicou-se à análise dos agregados numa abordagem que buscou unir o lógico e o histórico “ao nível do conhecimento categorial-sistemático da história. Gorender, J. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1988, p. 17; pp. 289 e ss.

[lxiv] “Até então eles se tinham mantido apenas como espectadores passivos da luta que se travava em seu benefício; agora se tornam participantes dela, reagindo contra seu estado por meio de fugas coletivas e abandono em massa das fazendas”. Prado Júnior, Caio. História Econômica do Brasil, op. cit., p. 194. “A causa imediata mais importante da abolição foi a fuga dos escravos das fazendas de café de São Paulo e Rio”. Graham, Richard. Escravidão, Reforma e Imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 72.

[lxv]  A queda do Gabinete Zacarias, que Caio Prado qualificou de golpe de Estado, afastou do poder o Partido Liberal por dez anos. Prado Júnior, Caio. História Econômica  do Brasil, p. 191.

[lxvi] Costa, Emília Viotti da. A Abolição. p.96.

[lxvii]         Costa, Emília Viotti da. A Abolição, p. 110.

[lxviii]       O professor Wilson Barbosa estudou o período abolicionista na perspectiva da História Econômica quantitativa. Ele ingressou no Departamento de História da USP coincidentemente no centenário da abolição… Barbosa, Wilson do Nascimento. A crisálida: aspectos histórico-econômicos do fim da escravidão no Brasil, 1850-1888. Introdução à uma análise quantitativa. USP, Livre Docência, 1994.

[lxix] Sua organização se intensificou nos  anos 1970. Cf. Santos, Letícia Leal. Associações de empregadas domésticas no Brasil na década de 70: Da marginalização à luta pela profissionalização. USP, Projeto de iniciação científica, 2019.

[lxx]  Secco, L. História do PT.  Prefácio de Emilia Viotti da Costa. São Paulo: Ateliê, 2011.

[lxxi] Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, cap. 3.

[lxxii]         Scholz, Roswitha. O valor é o homem: teses sobre a socialização pelo valor e a relação

entre os sexos. Revista Krisis n. 12, 1992, pp. 19-52. Disponível em: <http://obeco.planetaclix.pt/rst1.htm>

[lxxiii]       Gomes, Rosa Rosa. Rosa Luxemburgo: Crise e Revolução. São Paulo: Ateliê, 2018, p. 217.

[lxxiv]        Um exemplo da colonização do corpo feminino pelo imperialismo in: Proença, Marcela. Acumulação de Capital e Esterilização de Mulheres em Porto Rico: 1947 – 1968. USP, Relatório de Iniciação Científica, 2019.

[lxxv]         Hirata, Helena. Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero: divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparativa. Análise, Friedrich Ebert Stiftung, 7, 2015.

[lxxvi]                                                        Trata-se aqui do trabalho em geral e não do trabalho produtivo imediatamente para o capital . Sobre o conceito de trabalho produtivo vide: Cotrim, Vera.Trabalho Produtivo em Karl Marx: Velhas e Novas Questões. São Paulo: Alameda, 2012.

[lxxvii]      Luiz F. Alencastro afirma que, de 1550 a 1930, o mercado de trabalho nasce e cresce fora do território colonial e nacional, pois a força de trabalho é importada (primeiro os escravizados e depois os imigrantes). Alexandre Barbosa questionou-o,  demonstrando que não havia mercado de trabalho enquanto perdurou a escravidão; além disso, grande parte da força de trabalho após a Abolição, com a exceção do oeste cafeeiro e da cidade de São Paulo, era composta pelo “elemento nacional”. Vide: Barbosa, Alexandre Freitas. “O mercado de trabalho: uma perspectiva de longa duração”; Estudos Avançados, n. 30 (87), 2016, p.12 ; Alencastro, Alencastro, L. F. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p.354.

[lxxviii]     Uma empregada doméstica em São Paulo nos anos 1950 podia trabalhar de segunda a sábado, dormindo no emprego e sendo liberada aos domingos. Ainda assim podia ter que cuidar de algum filho do patrão consigo em  seu passeio. Informação de Ozória Ferreira Secco ao autor.

[lxxix]        O Estado de Minas, 27/09/2019.

[lxxx]         Informais são os e as empregadas que não possuem vínculos com a empresa nas quais trabalham, pequenos negócios sem cnpj, domésticas sem carteira assinada, pessoas que trabalham por conta própria ou em ajuda a um morador do domicílio ou parente sem receber pagamento. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/25066-pesquisa-revela-retrato-inedito-do-mercado-de-trabalho-do-interior-do-pais. Acesso: 1 de março  de 2020.

[lxxxi]        Barbosa, Wilson. “A Discriminação do Negro como Fato Estruturador do Poder”. Sankofa 2 (3), São Paulo, 2019.

[lxxxii]      Sakamoto, L. (Coord). Trabalho Escravo no  Brasil do Século XXI. Brasília, 2006.

[lxxxiii]     Uma curta experiência de colonização goiana no Estado Novo abrangeu uma maioria de negros e pardos, mas sem amparo econômicos as propriedades foram engolidas pelo latifúndio e a predominância de uma forma empresarial de ocupação do solo. Borges, Barsanulfo G. Goiás nos Quadros da Economia Nacional. Goiânia: UFG, 2000, pp. 75-77.

[lxxxiv]     Em contraposição ao seringueiro autônomo o cativo permanece submetido a um patrão seringalista. Paula, Elder Andrade de. (Des) Envolvimento Insustentável na Amazônia Ocidental. Rio Branco: EDUFAC, 2005, p.82.

[lxxxv]       Vide: Amano, André T. L. “Crise: Oportunidade de Quê(m)?”, Boletim do GMARX-USP, Ano 1 nº 9, Abril 2020.

[lxxxvi]     Jancsó, István. Na Bahia contra o Império. História do Ensaio de Sedição de 1798. São Paulo / Salvador: Hucitec / Edufba, 1996, p. 205. Para o professor István “gente da elite baiana estaria no centro” da conjuração de 1798. Jancsó. István. “Andanças com Ilana Blaj”; Revista de História, USP, N. 142-143, 2000. Jancsó, István. “Adendo à discussão da abrangência social da Inconfidência baiana de 1798” in Blaj. I. e Monteiro, J.M. História e Utopias. São Paulo, ANPUH, 1996.

Sobre a trajetória do autor veja-se a entrevista em que o professor István rememora sua vida desde a infância na Hungria até a docência na USP: Morel, Marco; Slemian, Andréa; Lima, André Nicácio (Orgs.). Um historiador do Brasil: István Jancsó. São Paulo: Hucitec, 2010. Sobre a conjuntura do  período vide: Reisewitz, Marianne. D. Fernando de Portugal e Castro: prática ilustrada na Colônia. USP, Dissertação Mestrado, 2001. Para a conjuração  bahiana: Valim, Patrícia. Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798. Salvador: Edufba, 2018.

[lxxxvii]    Os exemplos de Lula, Peron, Vargas etc são incompreensíveis para os que acreditaram em aliar-se à reação contra os governos petistas. Não se compreende que num mesmo conjunto social há o recuo programático de um partido “trabalhista” e a auto-organização popular.  São opostos, porém uma unidade. Cabe superá-la, não negá-la. Marinho, Adriana C. “Um Lulismo para além de Lula: São Bernardo e a consolidação de uma ideia”. In: Secco, L. (Org.). A Ideia: Lula e o sentido do Brasil Contemporâneo. São Paulo: NEC/ Contraf, 2018, p. 111-117.

[lxxxviii]  A defesa de espaços comuns, serviços públicos gratuitos, a tarifa zero de transporte e a renda básica universal (um mínimo regulador do preço da força de trabalho) constituem formas de um “direito social desvinculado de uma relação trabalhista”, apud Liberato, Leo Vinicius. Expressões Contemporâneas de Rebeldia: poder e fazer da juventude autonomista. Florianópolis, Tese de  Doutorado, UFSC, 2006. Suplicy, Eduardo. Renda Básica de Cidadania. Porto Alegre, LP&M, 2006. Singer, Paul. Um governo de esquerda para todos: Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992). São Paulo: Brasiliense, 1996.

[lxxxix]     Isso não significa deslocar a pesquisa da classe para outras identidades (e sim agregá-las); muito menos do processo produtivo para a cultura e sim combiná-los. Uma análise inovadora que reavalia completamente o impacto  do fordismo e reconstitui “a importância da estrutura produtiva para a análise dos conflitos sociais na década de 1920 na cidade de Buenos Aires”, ressaltando novas formas de conflito, as greves – ou a dificuldade de realizá-las – e o movimento sindical foi realizada por: Ferreira, Fernando Sarti. A contrarrevolução produtiva: refluxo e estabilização do conflito social em Buenos Aires, 1924-1930. USP, tese de doutorado, 2020.

História e cultura indígena

O Centro de Estudos Mesomericanos e Andinos da USP (CEMA-USP) inaugurou nova seção na sua página eletrônica, que contém a produção científica de seus coordenadores, pesquisadores e colaboradores.
A seção conta, atualmente, com mais de 280 produções: artigos, dissertações, teses, livros, capítulos de livros e entrevistas,  que foram produzidos nas últimas décadas e tratam da história e cultura dos povos indígenas.
É um amplo material para pesquisadores e representa excelente apoio didático para professores.

 

Leitura de “A morte e a bússola” – mensagem de Júlio Pimentel Pinto aos estudantes de História da Cultura

Uma leitura de “A morte e a bússola”, de Jorge Luis Borges[1]

 

Júlio Pimentel Pinto

 

A marca mais notável do gênero policial na obra individual de Borges — e por ele mesmo admitida — é “A morte e a bússola”.[2] Lá estão os elementos básicos de um conto policial: o detetive imaginativo e seu assistente realista, a trama intrincada que envolve os crimes, o clima de mistério e expectativa, a lógica rigorosa da investigação em contraste com as trivialidades do quotidiano, os jogos de signos, a vitória da razão.

A abertura do texto instiga o leitor ao mencionar a “perspicácia” de Lönnrot e a “estranheza” dos episódios:

“Dos muitos problemas que exercitaram a temerária perspicácia de Lönnrot, nenhum tão estranho — tão rigorosamente estranho, diremos — como a periódica série de fatos de sangue que culminaram na chácara de Triste-le-Roy, em meio ao interminável odor de eucaliptos. É bem verdade que Eric Lönnrot não conseguiu impedir o último crime, mas é indiscutível que o previu. Tampouco adivinhou a identidade do infausto assassino de Yarmolinsky, mas, sim, a secreta morfologia da malvada série e a participação de Red Scharlach, cujo segundo apelido é Scharlach, o Dândi. Esse criminoso (como tantos outros) tinha jurado pela sua honra a morte de Lönnrot; este, porém, nunca se deixou intimidar. Lönnrot se julgava um puro raciocinador, um Auguste Dupin, mas havia nele algo de aventureiro e até de jogador.”[3]

O parágrafo oscila intencionalmente entre o tradicionalismo de uma abertura clássica de conto policial — com a instauração do suspense, que contrasta com a serenidade da ambientação — e a inovadora revelação imediata de parte do mistério, que inclui a identificação do criminoso e o reconhecimento de que o detetive não obteve sucesso completo. O narrador antecipa o desfecho com um corte abrupto após o primeiro ponto e transgride a expectativa do leitor, desviando a atenção deste para outros aspectos da trama. Dois dos aspectos centrais também são apresentados de saída, sob a forma talvez discreta de um adjetivo e um advérbio. Através deles, o leitor fica sabendo que a perspicácia de Lönnrot é “temerária” e o problema é “rigorosamente” estranho. Não se trata, portanto, da habitual (e esperada) perspicácia de todo detetive de ficção, nem da estranheza regular de uma intriga que envolve crimes de sangue. A perspicácia de Lönnrot inclui riscos, sugere ações incertas; a estranheza do caso comporta um “rigor” que — só depois saberemos — resulta do exagero lógico da análise de Lönnrot, que desemboca em soluções artificiais, distanciando-se (ao invés de se aproximar) da revelação.

A habitual caracterização inicial do detetive vem acompanhada, e em parte antecedida, da apresentação do criminoso. Esta assume ares convencionais (seus apelidos sugerem um passado, um estilo e a ocasional necessidade de ocultar o verdadeiro nome) e, ao mesmo tempo, contrastantes: o criminoso é um dândi. Já Lönnrot cresce aos poucos no parágrafo; é primeiramente um sobrenome, para depois ganhar prenome e, finalmente, atitude. Também em seu caso, sugere-se um desajuste: ele se toma por Dupin (o que permite ampliar a importância de sua perspicácia e da eficácia de sua razão analítica), mas age de forma perigosa, isto é, descontrolada, “temerária”, supostamente alheia à razão. Os dois personagens aparecem juntos e unidos pelo passado, cujos detalhes só conhecemos no final, embora saibamos que se prolongam até o tempo da narração: Scharlach pretende vingar-se. A brutalidade da vingança jurada tem, igualmente, seu antônimo no parágrafo: o breve comentário, entre parênteses, de que o malfeitor não foi o único a ameaçar Lönnrot, e este não se intimidava.

O espelhamento entre detetive e criminoso não é incomum no gênero policial; ao contrário, são numerosos os exemplos de simetria entre os dois principais personagens da trama, que agem como duelistas. O tema aparecera inclusive em Poe e ganhara seu maior desenvolvimento em “A carta roubada”. No conto de Borges, porém, ela é levada às últimas conseqüências. John Irwin observa que as semelhanças já estão nos nomes bastante próximos:

“Lönnrot e Scharlach são, é claro, duplos um do outro, como indicam seus nomes. Numa nota ao conto, Borges diz: ‘A sílaba final de Lönnrot significa vermelho em alemão, e Red Scharlach também é traduzível, em alemão, como Vermelho Escarlate.’ Em algum outro lugar, Borges nos conta que Lönnrot é sueco, mas evita informar que, em sueco, a palavra lönn é um prefixo que significa ‘secreto’, ‘escondido’ ou ‘ilícito’. Portanto, Lönnrot, o vermelho secreto ou escondido, persegue e é perseguido por seu duplo Red Scharlach (Vermelho Escarlate), o duplo vermelho.”[4]

Daniel Balderston reconhece a equivalência entre Lönnrot e Scharlach, mas discorda da associação dos nomes dos personagens centrais do conto, para os quais oferece outras origens e outros significados:

“Um dos lugares comuns da crítica de ‘A morte e a bússola’, que consiste em cerca de quarenta artigos e numerosos capítulos de livros, é que o peculiar desdobramento de Lönnrot, o detetive, em Scharlach, o criminoso, se reflete em seus nomes: tanto ‘rot’ quanto ‘scharlach’ significam ‘vermelho’ em alemão. Alguns críticos (entre eles, o inefável John Sturrock) expandiram este jogo e observaram que ‘red’, o nome da cor em inglês, significa ‘labirinto’ em espanhol. Este tipo de jogo interlingüístico é atraente para a interpretação do relato exatamente pelas múltiplas maneiras com que este joga com a compreensão e os mal-entendidos culturais. Não serve, porém, para realizar um exame adequado do jogo. O próprio Borges observou, certa vez, que Lönnrot é um nome sueco, não alemão. ‘Rot’, aqui, significa ‘raiz’ e não ‘vermelho’. E ‘lönn’ quer dizer ‘carvalho’, e não ‘ocultamento, como pretenderam alguns. O sueco, como os demais idiomas germânicos (inclusive o inglês), tem a prática de construir palavras compostas por dois ou mais substantivos, um fato discutido por Borges em ‘Las kenningar’ (…). O nome de Lönnrot, ‘raiz de carvalho’, relaciona-se, através do substantivo ‘lönn’ (que, segundo o sempre perspicaz John Sturrock, “não parece significar nada importante”) com uma interessante série de outras palavras: ‘lönnbrännare’, destilador ilegal; ‘lönndom’, secretamente, clandestinamente; ‘lönndörr’, porta secreta; ‘lönngang’, corredor oculto; ‘lönnkrögare’, negócio ilegal que vende genebra; ‘lönnlig’, secreto, solapado; ‘lönnmord’, asesinato; ‘lönnmorda’, assassinar; ‘lönnmördare’, assassino; ‘lönnrum’, quarto secreto. Com exceção da ‘genebra ilegal’, todos estes conceitos têm a ver com o relato, confirmando novamente que Borges tinha um conhecimento preciso do  significado das palavras utilizadas e, neste caso, do significado do nome de Elias e Erik Lönnrot.”[5]

A polêmica em torno das origens dos nomes confirma, de qualquer maneira, a preocupação borgeana com jogos lingüísticos e de raciocínio e a equivalência entre Lönnrot e Scharlach. Borges, ao falar do conto em uma entrevista do final dos anos 1970, destacou a identificação entre detetive e criminoso e lamentou não ter deixado mais clara a fusão entre ambos:

“(…) é um lindo conto policial. Mas tenho que reescrever esse conto. Para que se entenda que o ‘detetive’ já sabe que a morte o espera no final. Não sei se destaquei isso. Porque, senão, o detetive parece um tonto. Seria melhor que ele soubesse tudo isso, já que o outro é ele, já que quem o mata é ele. Discorrem da mesma forma, pensam igual.”[6]

A simetria entre Lönnrot e Scharlach contribui para deslocar o assistente do detetive de sua habitual função de contraponto da razão analítica. O auxiliar de  Lönnrot, Comissário Treviranus, aparece apenas na metade da segunda página do texto, quando o leitor já se identificou ao investigador principal, por oposição ao criminoso. O personagem é desenhado apenas superficialmente e sua atuação é bastante discreta — principalmente se comparada à exuberância e à complexidade do raciocínio de Lönnrot.

A superficialidade de Treviranus também se expressa nas explicações que tenta dar aos crimes e que são prontamente rejeitadas pelo chefe. Já no primeiro crime, ele sugere o acaso como origem do crime:

“— Não se deve procurar chifre em cabeça de cavalo — dizia Treviranus, brandindo um imperioso charuto. — Todos nós sabemos que o Tetrarca da Galiléia possui as melhores safiras do mundo. Alguém, para roubá-las, terá penetrado aqui por engano. Yarmolinsky levantou-se; o ladrão teve que matá-lo. Que lhe parece?”

A resposta de Lönnrot, categórica, rebaixa Treviranus ao lugar em que os assistentes de detetives de ficção costumam ser colocados:

“— Possível, mas não interessante — respondeu Lönnrot. — O senhor replicará que a realidade não tem a menor obrigação de ser interessante. Eu lhe replicarei que a realidade pode prescindir dessa obrigação, mas não as hipóteses. Na que o senhor improvisou, o acaso intervém fartamente. Eis aqui um rabino morto; eu preferiria uma explicação puramente rabínica, não os imaginários percalços de um imaginário ladrão.”[7]

Os pecados de Treviranus são de várias ordens: ele carece de imaginação, prefere o improviso à reflexão e contenta-se com o banal. As réplicas antecipadas de Lönnrot revelam ainda a razão precária e limitada de seu auxiliar, incapaz de criar hipóteses “interessantes” para a razão decifradora, que exige, por sua vez, adequação, coerência e seqüência no raciocínio e na solução do investigador.

O diálogo prossegue e o prosaísmo e a superficialidade de Treviranus ficam mais claros:

“— As explicações rabínicas não me interessam; o que me interessa é a captura do homem que apunhalou este desconhecido.”[8]

Lönnrot, à beira do ensimesmamento do analista compulsivo que é, expõe, em resposta, os primeiros indícios: os livros guardados no armário do quarto do rabino. O narrador, que emula o leitor e parece concordar com a posição do detetive, destaca o simplismo de Treviranus, ao comentar seu “temor”, “quase repulsa” e riso quando olha os livros. A oposição é óbvia: o livresco e culto Lönnrot diante do pragmático e superficial Treviranus.

Um novo corte na narrativa, produzido por duas pequenas interpolações, impede que a ligação entre os colegas se rompa definitivamente: primeiro, um jornalista judeu — personagem esporádico, mas importante — ironiza a hipótese religiosa levantada por Lönnrot, mas ninguém lhe dá atenção; em seguida, um agente descobre uma pista que parece confirmar a suspeita do detetive de que se trata de um enigma lógico e religioso. O narrador reafirma sua aparente defesa de Lönnrot ao destacar que ele sequer comemorou sua pequena vitória (“se absteve de sorrir”) para imergir fundamente na investigação:

“Repentinamente bibliófilo ou hebraísta, ordenou que lhe fizessem um pacote com os livros do morto e levou-os para o seu apartamento. Indiferente à investigação policial, dedicou-se a estudá-los.”

A frase final revela uma ironia do narrador que até então estivera contida. Para Lönnrot, a investigação independe da realidade; toda revelação, criminal ou religiosa, está na palavra e nos livros, não coincidentemente voltados ao mistério maior do nome de Deus. A obsessão intelectual é tamanha que ele rejeita nova intervenção do jornalista judeu:

“Poucos dias depois, distraiu-o dessa erudição a chegada do redator da Yiddische Zeitung. Este queria falar do assassinato; Lönnrot preferiu falar dos diversos nomes de Deus; o jornalista declarou em três colunas que o investigador Erik Lönnrot tinha se dedicado a estudar os nomes de Deus para dar com o nome do assassino. Lönnrot, habituado com as simplificações do jornalismo, não se indignou.”[9]

Todos os personagens do conto cumprem seus papéis e prosseguem em seus itinerários: Lönnrot avança galhardamente em seus estudos hebraicos; Treviranus continua a investigar, com trabalho braçal, os crimes que se sucedem; o jornalista judeu aproxima-se de Lönnrot num esforço progressivo de romper seu isolamento livresco; o narrador, que antes concordava com o detetive, passa a ironizá-lo e, depois, a caricaturá-lo; o criminoso volta a matar e deixa pistas cada vez mais coerentes com a visão do detetive. Como em toda narrativa policial, as histórias paralelas — algumas mais explícitas, outras subterrâneas — confluem para o desfecho elucidativo e para o prevalecimento da razão analítica do detetive, que decifra o enigma e o expõe aos demais personagens e leitores.

Em meio a personagens que se duplicam e se reunificam — outra tradição da narrativa policial, já destacada por Borges nas “leis” — e a indícios que tornam Lönnrot cada vez mais convicto da correção de sua hipótese “imaginativa”, o narrador ainda aponta outro momento de tensão entre Treviranus e seu chefe:

“Na tortuosa Rue de Toulon, quando pisavam as serpentinas mortas da madrugada, Treviranus disse:

— E se a história desta noite for um simulacro?

Erik Lönnrot sorriu e leu para ele com toda a gravidade uma passagem (que estava sublinhada) da trigésima terceira dissertação do Philologus (…).

O outro ensaiou uma ironia.

— Esse dado é a coisa mais valiosa que o senhor recolheu esta noite?

— Não. Mais valiosa é uma palavra que disse Ginzberg.”[10]

A serenidade quase arrogante de Lönnrot e sua aposta no verbo mais do que nas ações pretende informar o leitor da inadequação das sugestões de Treviranus e da proximidade da resolução do mistério, sempre apoiada em palavras e em seus sentidos cifrados, só compreensíveis por especialistas. A variação de tom e de posicionamento do narrador, no entanto, já reorientou e inverteu, nessa altura do conto, a visão do leitor: a excessiva convicção de Lönnrot reduziu sua credibilidade, enquanto a desconfiança de Treviranus ganhou espaço. Na prática, o narrador se impõe cada vez, tornando-se mais visível e enfático — por exemplo, quando atesta que Treviranus era “indiscutível merecedor de tais loucuras”[11] ou quando explicita a ficcionalidade do relato e da geometria urbana em que Lönnrot se apoia para construir sua interpretação definitiva e chegar ao local do último crime: “Ao sul da cidade de meu conto flui um cego riacho de águas barrentas.”[12]

O prevalecimento da ficção também antecipa outra ficcionalidade: a da solução encontrada por Lönnrot que, coerente com seu esforço exclusivamente intelectual, despreza as condições concretas dos crimes:

“Lönnrot considerou a remota possibilidade de que a quarta vítima fosse Scharlach. Depois, rejeitou-a… Virtualmente, tinha decifrado o problema; as meras circunstâncias, a realidade (nomes, prisões, rostos, trâmites judiciais e carcerários), quase não o interessavam agora. Queria passear, queria descansar de três meses de investigação sedentária. Refletiu que a explicação dos crimes estava num triângulo anônimo e numa poeirenta palavra grega. O mistério quase lhe pareceu cristalino; sentiu vergonha de ter lhe dedicado cem dias.[13]

A menção ao sedentarismo esclarece a eventual dúvida que a primeira adjetivação da perspicácia de Lönnrot pudesse ter deixado: ela não era “temerária” por se lançar ao aventureirismo característico das histórias de ação, mas porque excedia em outros jogos, os da razão, e perdia a conexão com o mundo real. Essa irrealidade lhe é fatal: o previsível e definitivo encontro com Scharlach nas últimas páginas do conto apenas confirma o percurso enunciado pelas pistas que o narrador deixou e que conduziram os leitores a perceber o engano de Lönnrot, envolvido pela rede de indícios falsos com que o criminoso o atraiu para consumar sua prometida vingança.

Em seu conto mais caracteristicamente policial, Borges utiliza inúmeros recursos: o sentido autorreferente do relato, características gauchescas sob títulos afrancesados[14], dados religiosos. Erik Lönnrot, o detetive, traça a cuidadosa geometria que caracteriza os policiais analíticos, e essa geometria é aplicada ao desenho da cidade de Buenos Aires. Seu interesse lógico impede, por exemplo, que busque qualquer explicação não-matemática para os crimes. E tudo acontece de forma invertida: a visão simplista e prosaica de seu auxiliar é a correta e a sua é fantasiosa. Lönnrot insiste até o fim na correção de sua interpretação. Antes de morrer, adverte Scharlach da imprecisão no desenho dos crimes e lhe pede uma segunda chance que, na prática, implica em infinitos encontros repetidos entre ambos:

“Já era noite; do poeirento jardim subiu o grito inútil de um pássaro. Lönnrot considerou pela última vez o problema das mortes simétricas e periódicas.

— No seu labirinto sobram três linhas — disse por fim. — Eu sei de um labirinto grego que é uma linha única, reta. Nessa linha tantos filósofos se perderam que bem pode nela se perder um mero detetive. Scharlach, quando noutro avatar o senhor me caçar, finja (ou cometa) um crime em A, logo um segundo crime em B, a oito quilômetros de A, em seguida um terceiro crime em C, a quatro quilômetros de A e de B, na metade do caminho entre os dois. Aguarde-me depois em D, a dois quilômetros de A e de C, de novo na metade do caminho. Mate-me em D, como agora vai me matar em Triste-le-Roy.

— Para a outra vez que o matar — replicou Scharlach —, prometo-lhe esse labirinto, que consta de uma única linha reta e que é invisível, incessante.

Retrocedeu alguns passos. Depois, muito cuidadosamente, abriu fogo.”[15]

Conforme o narrador informara e prometera no parágrafo inicial, Lönnrot conseguiu prever o último crime — o que mostra algum sucesso de sua investigação — mas não pôde impedi-lo. A cena final, como em toda narrativa policial, é o ápice do texto. Nela, a imaginação e o raciocínio do assassino e do detetive, que até então estiveram sincronizados e espelhados à distância, mas correram em paralelo, são mostrados em detalhes. Nela, o leitor percebe que as duas histórias que existem em toda ficção policial (a do crime e a da investigação) podem ser unificadas. Nela, ocorre a revelação do enigma e a demonstração de como foi decifrado.

O final de “A morte e a bússola”, porém, reserva uma surpresa a mais para o leitor: quem explica o crime é o assassino, não o investigador. Podemos também perceber que mesmo em seu aparente sucesso — a previsão da última morte — Lönnrot foi derrotado por Scharlach: o detetive não propriamente previu o desfecho; foi levado a ele pela trama preparada pelo criminoso. O crime a ser decifrado não era o que ocorrera no passado (ou: no início do texto), mas o que ocorreria no futuro (ou: o que é cometido na última frase do conto).

No longo jogo de duplos, prevalece o engano que move a trama. Alma Bolón Pedretti destaca a projeção do engano no momento da leitura:

“O leitor faz sua parte, pedindo para ser tomado pela ilusão. Borges, como um mágico bem educado, primeiro nos oferece a solução e, depois, a desdobra e a entrega: desde o primeiro parágrafo, conhecemos todos os elementos fundamentais da história. O leitor conhece a verdade — leu direito este primeiro parágrafo — e, no entanto, continua a ler até que a verdade prevaleça. Esse prosseguimento atende ao desejo de engano do leitor.”[16]

O leitor que busca ser iludido, mais do que conhecer a verdade, é uma das variações que Borges provoca no gênero: é o duplo do leitor poeano, ambos derivados da lógica analítica do policial, ambos produzidos pelo reconhecimento da eficácia do gênero como inventor de novas condições de leitura. Em “A morte e a bússola”, os leitores são anteriores e posteriores ao texto: primeiro, aprenderam com Poe e seus sucessores; depois, com Borges e seus precursores. Esses leitores estão em toda parte, dentro e fora do texto. Por isso, é até possível que enxerguemos na ironia e no humor negro que percorrem o relato estratégias sutis, mas verossímeis, de se referir à polícia real, tantas vezes confusa e desorientada, tão diferente da fictícia, que é sempre racional e precisa. Muito além, porém, de ocasionais e incertas referências do texto ao mundo real, Borges transpõe para o universo da narrativa policial sua preocupação constante com a leitura e com as formas de aproximação do texto literário. Não é à toa que Lönnrot — destaca Cristina Parodi — confunde sua atuação como detetive com a de um leitor:

“Como todo detetive, Lönnrot é um raciocinador dedutivo: a partir de detalhes menores elabora uma explicação dos fatos, que repousa sobre débeis probabilidades. Mas não é apenas um ‘puro raciocinador’, como Dupin; é sobretudo um leitor, a quem só interessam os indícios textuais (…). Lönnrot é um detetive que só atende a indícios textuais, que alimenta suas intuições com a leitura de mais textos, e os organiza em um relato. Para imaginar a história do assassinato, deve duplicar o assassino, reproduzir sua conduta, recompor o modelo do crime. Supõe um assassino artista, como o Flambeau de Chesterton, que, em seus crimes, busca uma realização estética  (…). ”[17]

A surpresa do desfecho — prossegue Parodi — vem exatamente de percebermos que ele não é o único leitor, nem o melhor:

“Paradoxalmente, o desenlace lhe revela [a Lönnrot] que, enquanto acreditava ler as pistas deixadas pelo assassino, estava sendo lido por ele; enquanto escrevia uma trama para explicar a série de assassinatos, era o personagem inconsciente de um drama escrito pelo assassino; enquanto acreditava atuar livremente, estava se comportando segundo as leis de um relato projetado por outra mente. O leitor também é lido, o escritor também é escrito, ambos são textos, as leis do universo são as da ficção. Por seu lado, Scharlach também é um leitor, que compartilha com Lönnrot pelo menos algumas de suas leituras.”[18]

Scharlach, ao ler nos jornais sobre o assassinato do rabino, engendra uma história que ganha, além de Lönnrot, muitos outros leitores da história. Parodi detalha:

“[Scharlach] seleciona (em textos) mais indícios para escrever uma história, cujo leitor ideal será aquele que a ler como a história da investigação de um crime passado, sem suspeitar que se trata da história de um crime futuro. Leitores ideais serão Lönnrot e aqueles leitores de ‘A morte’ que, tal qual o detetive, se surpreenderem ante o desenlace inesperado. O quadro se complica se incluirmos os leitores do relato escrito por Borges. ‘A morte’ se apresenta abertamente como um artifício textual, uma ficção criada/narrada por um eu que a reconhece como criatura (‘Ao sul da cidade de meu conto’). Apresenta-se também como um caso policial; nós, leitores, sabemos então que estamos frente a um relato da investigação realizada pelo detetive para reconstruir a história de um crime. Com nossa leitura, colaboraremos com o detetive na criação dessa história. O que ignoramos é que, no texto, se esconde outro criador, Scharlach, que está escrevendo sua própria história, e que a escreve empregando os mesmos recursos, indícios e signos que o detetive emprega para escrever a sua. Para chegar à solução do enigma, os leitores deveriam dominar uma complexa estratégia de leitura que exige a duplicação simultânea do narrador, do detetive e do assassino, para decifrar as armadilhas que o assassino deixa para Lönnrot, as que o narrador deixa para os leitores e as que lhes prepara o escritor que, dentro do relato, escreve sua própria trama.”[19]

A própria conclamação final de Lönnrot, que sugere uma geometria distinta para a próxima vez em que Scharlach o for matar, indica sua disposição autoral e permite — afirma Hector Yankelevich — a aparição de uma das mais célebres metáforas de Borges, o labirinto, e a revelação de que também este, mesmo em sua regularidade aprisionadora, é plural, se apresenta sob várias feições, mas mantêm o primado geométrico e racional do mundo:

“Nosso mundo então, é a composição de dois labirintos, o das quatro letras impronunciáveis, e aquele de Aquiles e da tartaruga, ou seja, o da continuidade. O hebreu e o grego. O primeiro rege o ordenamento das bibliotecas e das línguas. O segundo, o impossível acesso ao Outro. Suas origens são diferentes, e nada prevê ou anuncia, num deles, a necessidade do outro. Mas por motivos certamente incalculáveis, ambos presidem, um e outro, (…) os trilhos de nossos destinos. O erro de Lönnrot foi acreditar que existem apenas ocorrências necessárias, que a ordem das letras apenas obedece a uma só modalidade. Ele morre por ter empobrecido a lógica.”[20]

Em meio à espiral de leituras e de lógicas precisas que “A morte e a bússola” permite, é inevitável testar a aplicação, por Borges, das “leis” que formulara uma década antes. Todas são cumpridas, inclusive a que defende a vitória completa da razão, independentemente desta estar a serviço da justiça. Mas duas das leis parecem receber especial atenção: a que exige a declaração de todos os termos do problema e a que determina a necessidade de um só resolução possível e que ela maravilhe o leitor. O privilégio não é casual, pois são exatamente estas regras que regulam, de forma mais direta, a relação entre texto e leitor; elas afirmam o compromisso que os liga e estabelecem as possibilidades (e limitações) da leitura. Por isso, este conto de Borges não é apenas sua melhor narrativa policial; é, sobretudo, sua insistência na caracterização do gênero segundo os princípios antes firmados por Poe e por Chesterton.

A rota dos precursores eleitos evidentemente sofre desvios e variações na reescritura borgeana. Parodi afirma, por exemplo, que Borges “subverte o modelo do policial”, ao alterar radicalmente as estratégias de leitura e oferecer um amplo repertório de paradoxos:

“Os leitores não encontram um mundo de sentido unívoco, mas múltiplo e caótico, que abunda em duplicidades e inversões (um rio com águas da cor do deserto; um hotel com aparência de torre, sanatório, prisão e bordel; uma chácara ‘infinita e crescente’, que é um labirinto; um seqüestro que é a duplicação de uma cena já vivida; uma cor que se repete no nome do detetive e no apelido do assassino; um criminoso — Scharlach, o Dândi — que demonstra uma qualidade tradicional nos detetives desde as primeiras figuras do gênero; um detetive que consegue imaginar uma solução para o enigma porque o assassino o constrói à sua medida; uma hipótese que é verdadeira porque prova ser falsa).”[21]

A subversão borgeana faz com que a afirmação, habitual no policial, de que o detetive “lê o texto do criminoso” não seja, em “A morte e a bússola”, apenas uma metáfora; é o desenvolvimento, na forma de ficção, de uma concepção acerca das formas de construir e difundir conhecimento, da relação entre escritor e leitor — o que Poe inventou e todos os outros que se dispõem a seguir pistas não necessariamente criminais a cada texto que leem e notar, em seu interior, a convivência entre duas ou mais histórias.[22] É também a retomada de uma analogia originalmente proposta por Chesterton no conto “A cruz azul”:

“E julgava Valentin que seu cérebro de detetive era tão bom como o do criminoso, o que era verdade. Mas estava de todo ciente de sua desvantagem: ‘O criminoso é o artista criador; o detetive é só o crítico’, disse com um sorriso amargo (…)”[23]

Escritor atento, capaz de desencadear a espiral de leituras, Scharlach é o verdadeiro artista e Lönnrot, o crítico em desvantagem. As leituras de ambos, em confronto, movem a narrativa e preparam o desenlace face-a-face, artista e crítico: leitor e leitor. Ricardo Piglia comenta o diálogo final e constata:

“Sem esse livro imaginário [a História da seita dos Hassidim] — sem essa cena decisiva e sarcástica em que um assassino usa um livro para capturar um homem que acredita apenas no que lê —, não haveria história. Temos que imaginar, portanto, Scharlach, um dândi sanguinário e sinistro, como leitor. O que lê, por quê, quando, em que situação? Lê para vingar-se de Lönnrot, portanto lê para Lönnrot e contra Lönnrot, mas também lê com ele. Lê a partir de Lönnrot (como Borges nos recomenda alguns textos ler a partir de Kafka), para seduzi-lo e capturá-lo em suas redes. Infere, deduz, imagina sua leitura e a duplica, confirma-a. Trata-se de uma espécie de bovarismo forçado, porque Scharlach na verdade obriga Lönnrot a atuar o que lê. A fé está em jogo. Lönnrot acredita no que lê (não acredita em outra coisa); poder-se-ia dizer que lê ao pé da letra. Ao passo que Scharlach, por sua vez, é um leitor displicente, que usa o que lê para seus próprios fins, tergiversa e  transporta o que lê para o real (como crime). Evidentemente, Scharlach e Lönnrot (ou seja, o criminoso e o detetive) são duas maneiras de ler. Dois tipos de leitor confrontados.”[24]

Dois tipos de leitores em choque e duas razões diferentes, mas cada uma, a seu modo, ativa, desejosa de participar da elaboração do texto. A estratégia do assassino-leitor, porém, lembra Piglia, é mais ampla e profunda, equivale à crítica e ainda é marcada pelo passado e determinada à vingança, à superação:

“O leitor como criminoso, que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. Lê mal, mas apenas no sentido moral; faz uma leitura cruel, rancorosa, faz um uso pérfido da letra. Poderíamos pensar na crítica literária como um exercício desse tipo de leitura criminosa. Lê-se um livro contra outro leitor. Lê-se a leitura inimiga. O livro é um objetivo transacional, uma superfície sobre a qual se deslocam as interpretações.

Scharlach usa o que lê como armadilha, como maquinação sombria, como superfície em branco sobre a qual os corpos deslizam. Em certo sentido, é o leitor perfeito; difícil encontrar uso mais eficaz para um livro. Provisoriamente, é o oposto do leitor inocente. Scharlach realiza a ilusão de D. Quixote, só que deliberadamente. Realiza na realidade o que lê (e o faz para outro). Vê no real o efeito daquilo que leu.”[25]

Borges, ele mesmo, foi esse tipo de leitor que Piglia associa a Scharlach: realizava transações com suas leituras, interpretava, ultrapassava, desviava, traía, reescrevia. No contexto de sua obra, a leitura é valorizada e se torna fundamento e objetivo pleno da escritura

“Talvez o maior ensinamento de Borges seja a certeza de que a ficção não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê. A ficção também é uma posição do intérprete. Nem tudo é ficção (…), mas tudo pode ser lido como ficção. Ser borgeano (se é que isso existe) é ter a capacidade de ler tudo como ficção e de acreditar no poder da ficção. A ficção como uma teoria da leitura. (…) Ao mesmo tempo, em Borges o ato de ler articula o imaginário e o real. Melhor seria dizer: a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade. Não existe nada mais simultaneamente mais real e ilusório do que o ato de ler.”[26]

Seguindo a trilha conceitual identificada por Chesterton, Borges conformou uma epistemologia derivada do modelo policial e alterada no processo de ficcionalização. Por isso, Ernesto Sábato chega a dizer que “A morte e a bússola” é uma síntese da obra borgeana, de sua paixão pelas geometrias perfeitas, pelos nomes, pela ironia, pelos silogismos, pela reinvenção imaginária do real. Tudo isso numa estrutura de conto policial, mostrando que as relações de Borges com o modelo superaram o interesse de leitor e escritor e se transformaram no centro de sua preocupação estética e intelectual:

“Em A morte e a bússola se dá um passo a mais [em relação à matriz poeana do policial] e a realidade se converte em geometria. (…) Borges desenvolve um problema de lógica e geometria. O pistoleiro Red Scharlach odeia o detetive Erik Lönnrot e jura matá-lo. Este é o único elemento psicológico, mas é apenas o motor que põe em marcha a maquinaria matemática. Como Borges, o criminoso ama a simetria, o rigor geométrico, o número, o silogismo; de forma que pensa e executa o plano matemático (…). Neste conto não se cometem assassinatos; demonstra-se um teorema. Os crimes do pistoleiro não emocionam de forma diferente que o resultado a2 + b2 = h2 do teorema de Pitágoras. Ou seja, há uma emoção, mas não é sensorial, e sim intelectual, do tipo que as teorias filosóficas ou as inferências científicas produzem. A cidade em que Red Scharlach comete seus crimes é Buenos Aires, mas parece não ser; é conhecida, mas irreal; os nomes de suas ruas são fantásticos, os nomes de seus habitantes são inacreditáveis, a frieza de suas atitudes é inumana.”[27]

Também Yankelevich afirma que o conto ajuda a compreender o conjunto da obra de Borges, e não apenas sua relação peculiar com o policial:

“‘A morte e a bússola’ é um exemplo extremamente singular da estrutura da ficção borgeana. Imitação da novela policial (que pretende parecer um pastiche de ‘A carta roubada’, de Poe), perfeição da maquinação intelectual, obsessão do duplo, sofisticação do crime, detalhes grotescos, citações falsas, mas efetivo conhecimento de suas referências: tudo concorre para que seja uma de suas grandes narrativas.”[28]

A atribuição de papel paradigmático de toda a obra de Borges a este conto pode soar exagerada, mas indica a importância da narrativa criminal na conformação da ficção borgeana. Mais do que isso, e juntamente com a eleição de Poe e Chesterton como precursores, revela a irradiação do modelo policial para o restante de sua obra individual e para parte da obra em colaboração.

Por meio da eleição de afinidades literárias, da invenção de precursores e da constituição de um conjunto de procedimentos textuais, a narrativa policial significou, para Borges, um passo decisivo na fundação do que Emir Rodríguez Monegal definiu como uma “poética da leitura”[29] e que inclui o rigor racional na constituição do texto, a auto-identificação do autor como leitor e amanuense de textos alheios e, sobretudo, a fundação de um diálogo peculiar com os futuros leitores: múltiplos, sucessivos e desconfiados leitores, dispostos a participar nos jogos de raciocínio propostos por Borges, mesmo quando eles não vêm acompanhados de um crime a ser decifrado. Borges, um autor de policiais mesmo quando a narrativa não é policial.

 

[1] Texto enviado por Júlio Pimentel Pinto às alunas e aos alunos de História da Cultura 4, durante o período de isolamento.

[2] “A morte e a bússola” foi publicado em versão pré-original em Sur, nº 92, maio de 1942, e republicado na antologia Los mejores cuentos policiales (seleção e tradução de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares). Buenos Aires: Emecé, 1943. A partir de 1944, passou a integrar as edições de Ficções. Cf. Jorge Luis Borges. Œuvres complètes I. Paris: Gallimard, 1993 (organização e notas por Jean Pierre Bernès), p. 1589.

[3] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (tradução: Davi Arrigucci Jr.), p. 121.

[4] John Irwin. The Mistery to a Solution. Poe, Borges and the Analytic Detective Story. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994, p. 30. A mencionada nota de Borges ao conto aparece na edição norte-americana organizada por Norman Thomas di Giovanni. The Aleph and Other Stories. Nova York: Dutton, 1978, p. 269. Irwin cita o McKay’s Modern English-Swedish and Swedish-English para lembrar que lönnrot, no sueco atual, significa “árvore de bordo” (maple tree), mas insiste que a referência borgeana a rot como “vermelho” permite decompor o nome.

[5] Daniel Balderston. “Fundaciones míticas en “La muerte y la brújula”. Variaciones Borges 2 (1996). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 126-127. Ao contestar os autores que buscam origens alemãs para os nomes dos personagens, Balderston critica especialmente John Sturrock (Paper Tigers. The Ideal Fictions of Jorge Luis Borges. Oxford: Clarendon Press, 1977) e prossegue em seu trabalho de identificação de referências históricas na obra de Borges. No caso, busca associar o detetive de “A morte e a bússola” a Elias Lönnrot, que ele mesmo define: “Elias Lönnrot (1802-1884), apesar do nome sueco, é um dos criadores intelectuais da Finlândia moderna. Discípulo de Herder, Lönnrot é o mais importante dos intelectuais finlandeses do período imediatamente posterior à cessão da Finlândia pela Suécia a Rússia, em 1809.” Idem, p. 127.

[6] Borges el memorioso. Conversaciones de Jorge Luis Borges con Antonio Carrizo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1982, p. 229-230. As entrevistas foram feitas entre julho e agosto de 1979. Alma Bolón Pedretti insiste na presença dos duplos como estratégia borgeana de variar a clássica perseguição de um homem por outro homem: “De saída, uma imagem salta aos olhos: ‘A morte e a bússola’ trata da caça de um homem. Mesmo se o caçador e a presa gostam de se duplicar e trocar de posição. Pois, na prática, esta história de caça a um homem tem, na sua pré-história, uma história de caça a um homem. A caça — assunto só dos dois — se desdobra no presente e em direção ao passado: conta-nos a história de um homem que persegue um outro que, por sua vez, o persegue para vingar a perseguição de que seu irmão foi vítima no passado. Naturalmente, o itinerário é repleto de peças, ou seja, de objetos duplicados, passíveis de se tornar algo diferente do que são. Objetos que, por definição, pregam peças na realidade, com a condição de que a ilusão que propõem seja levada a sério. É o que Erik Lönnrot não deixa de fazer.” “Une éloge du leurre à propos de ‘La muerte y la brújula’”. Variaciones Borges 5 (1998). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 87.

[7] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções, p. 122-123.

[8] Idem, p. 123.

[9] Idem, p. 124. Sylvia Saítta destaca o personagem-jornalista e do próprio jornal e encara sua presença no conto como uma variação, operada por Borges, do uso que Poe dá ao jornal: “As funções do jornalismo no relato policial se invertem: enquanto que em “O mistério de Marie Roget”, de Edgar Allan Poe, Auguste Dupin resolve o caso lendo os jornais, neste relato [de Borges] é o assassino que constrói a trama do assassinato porque leu: Scharlach se inteira, pelos jornais, que Lönnrot entendeu literalmente a frase escrita por Yarmolinsky antes de morrer, e essa leitura, em vez de desvendar o enigma policial, o constrói. Lönnrot desdenha da versão que o jornalismo dá de suas investigações — habituado, diz o texto, ‘às simplificações do jornalismo’ — e cai na armadilha (ou escolhe se encaminhar à chácara de Triste-le-Roy) não pela falácia de seus raciocínios, que são, do ponto de vista abstrato e racional, impecáveis, mas porque leu o texto errado: leu os relatos de Poe, e não os relatos de massa. Lönnrot despreza a versão do Yidische Zaitung, mas também descarta as hipóteses pouco interessantes do comissário Treviranus porque os relatos de Poe bloqueiam tanto o relato do jornalismo quanto o relato oral que provém da experiência.” “De este lado de la verja: Jorge Luis Borges y los usos del periodismo moderno”. Variaciones Borges 9 (2000). Aarhus: Centro Jorge Luis Borges, p. 79-80.

 

[10] Idem, p. 127-128.

[11] Idem, p. 128.

[12] Idem, p. 129.

[13] Idem, p. 129-130.

[14] Em “O escritor argentino e a tradição”, Borges comenta a escritura de “A morte e a bússola” e sua preocupação em descaracterizar, na ambientação, as marcas dos arredores de Buenos Aires e misturar material gauchesco com referências europeias, conformando um relato simultaneamente argentino e cosmopolita: “Permitam-me aqui uma confidência, uma mínima confidência. Durante muitos anos, em livros agora felizmente esquecidos, tentei descrever o sabor, a essência dos bairros extremos de Buenos Aires; naturalmente utilizei muitas palavras locais, não prescindi de palavras como cuchilleros, milonga, tapia, e outras, e assim escrevi aqueles esquecíveis e esquecidos livros; depois, há quase um ano, escrevi uma história que se chama ‘A morte e a bússola’, que é uma espécie de pesadelo, um pesadelo em que figuram elementos de Buenos Aires deformados pelo horror do pesadelo; penso ali no Paseo Colón e o chamo Rue de Toulon, penso nas chácaras de Adrogué e as chamo Triste-le-Roy; publicada essa história, meus amigos me disseram que finalmente tinham encontrado no que eu escrevia o sabor dos arredores de Buenos Aires. Precisamente porque não me propusera a encontrar essse sabor, porque me abandonara ao sonho, pude conseguir, ao fim de tantos anos, o que antes busquei em vão.” Discussão. Obras completas. volume I. 1923-1949. São Paulo: Globo, 1998 (tradução: Josely Vianna Baptista), p. 292. O texto é originalmente de 1953 e precisa ser considerado à luz das circunstâncias políticas então vividas pela Argentina e da explícita rejeição de Borges ao nacionalismo peronista. No entanto, também é possível ver, no elogio de Borges à descaracterização do ambiente em que transcorre a trama, uma recusa do realismo que o modelo do policial duro impunha à narrativa policial de então. José Fernández Vega destaca exatamente esse aspecto a partir da análise de outro texto de Borges (a resenha do libro de M. Peyrou, La espada dormida, publicada no nº 127 de Sur, em maio de 1945): “É evidente agora que a prevenção [de Borges] está dirigida, na verdade, contra o realismo a que o gênero podia derivar. Por isso, (…) [Borges] defende a ambientação das histórias policiais em cenários estrangeiros ou locais, mas deformados de tal maneira que ninguém sucumba à tentação de estender pontes para a mera realidade. (…) ‘A morte e a bússola’ exaspera a intervenção sobre a paisagem urbana de Buenos Aires — o paradigma é sempre Chesterton e o tratamento que esse autor dá a Londres” “Una campaña estética. Borges y la narrativa policial”. Variaciones Borges 1 (1996), p. 31-33.

[15] Jorge Luis Borges. “A morte e a bússola”. Ficções, p. 135. O tema do infinito e da repetição, manifestos simbolicamente na menção de Lönnrot à fábula de Aquiles e a tartaruga, são insistentes na obra de Borges.

[16] Alma Bolón Pedretti. “Une éloge du leurre à propos de ‘La muerte y la brújula’”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 89.

[17] Cristina Parodi. “Borges y la subversión del modelo policial”, in Rafael Olea Franco (org.). Borges: desesperaciones aparentes y consuelos secretos. México: El Colégio de México, 1999, p. 85 e 89.

[18] Idem, p. 89.

[19] Idem, p. 89-90.

[20] Hector Yankelevich. “La boussole de la mort. L’écriture et le crime”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 93-94.

[21] Cristina Parodi. “Borges y la subversión del modelo policial”, in Rafael Olea Franco (org.). Borges: desesperaciones aparentes y consuelos secretos, p. 88.

[22] A convivência de mais uma história na trama policial e sua associação, realizada por Ricardo Piglia, à própria estrutura do conto são discutidas no ensaio, “A zona indeterminada do real”.

[23] G. K. Chesterton. “A cruz azul”. A inocência do Padre Brown. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2006 (original: 1911 ; tradução: Carlos Ancêde Nougué), p. 37. Parte dele é citado por Cristina Parodi no texto já mencionado.

[24] Ricardo Piglia. “O que é um leitor?” O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 (original: 2006; tradução: Heloisa Jahn), p. 34.

[25] Idem, p. 34-35.

[26] Idem, p. 28-29.

[27] Ernesto Sábato. Uno y el universo. Barcelona: Seix Barral, 1968 (original: 1945), p. 37, consultado na versão eletrônica completa disponível em http://www.scribd.com/doc/10252457/Sabato-Ernesto-Uno-y-el-Universo (acesso em 8/10/2009).

[28] Hector Yankelevich. “La boussole de la mort. L’écriture et le crime”. Variaciones Borges 5 (1998), p. 91.

[29] Emir Rodríguez Monegal. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980 (tradução: Irlemar Chiampi).

Entrevista sobre Moraes Moreira, por José Geraldo Vinci de Moraes

Recentemente a imprensa repercutiu o impacto do falecimento do compositor Moraes Moreira, revelando a grandeza do músico baiano. Para comentar e refletir o acontecimento o jornalista Gustavo Xavier, do Jornal da USP, entrevistou o professor do DH-FFLCH José Geraldo Vinci de Moraes, membro do Comitê Editorial da RH.

Qual papel os Novos Baianos desempenharam na história da música brasileira? E como você localiza a contribuição do Moraes Moreira nos Novos Baianos?
O papel ocupado pelos Novos Baianos na cultura musical brasileira foi e continua sendo muito grande. Poucos conjuntos musicais de formação duradoura e estável como ele foi alcançaram tamanha influência durante o período de sua existência nos anos 1970, e que permaneceu ativa de maneira evidente ou oculta — uma vez que artistas e conjuntos não têm a consciência clara dela — até os dias de hoje. O grupo formulou uma linguagem musical renovada e muito própria — associando e estabelecendo relações entre o Rock, o Samba, a bossa Nova, o Choro, o Frevo e assim por diante — que influenciou inúmeros compositores, bandas e movimentos musicais. E no epicentro deste processo e do conjunto estava justamente Moraes Moreira. Claro que a banda tinha um sentido coletivo que praticava musicalmente, mas também no modo de vida muito próprio da juventude daquela época: tanto é que foram morar todos juntos em um sítio em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. No entanto, o compositor mais produtivo e destacado sempre foi Moraes. Para se ter uma dimensão de sua importância, no disco mais marcante da banda, Acabou Chorare (1972), fora Brasil Pandeiro, de Assis Valente, todas as outras composições têm a participação direta de Moraes Moreira. Além disso, ele e Pepeu Gomes foram os responsáveis por todos os arranjos. Esse exemplo certamente revela o tamanho de sua influência no conjunto. Além disso, quando ele iniciou a carreira solo, a banda se desestabilizou e encerrou sua trajetória, no final dos anos 1970. Mesmo assim, Moraes Moreira e Novos Baianos não podem de modo algum ser dissociados.

Você enxerga uma rota na história musical de Moraes Moreira? Sua maneira de tocar e de compor se modificou ao longo de sua trajetória nos Novos Baianos? E depois dos Novos Baianos, como você situaria a trajetória musical dele?
Claro: como em toda trajetória artística, é possível ver em retrospectiva uma certa rota, mas com caminhos e trilhas que muitas vezes se aproximam ou se distanciam. Certamente esses trajetos nunca são pré-determinados, sobretudo na carreira dos artistas populares que constroem itinerários menos institucionais: eles vão sendo criados de maneira inventiva no cotidiano. Dos temas e práticas da juventude dos anos 70, do encontro com João Gilberto e a Bossa Nova, do reencontro com carnaval de Trio Elétricos até a docilidade da maturidade, se percebe essa diversidade criativa. Mas ao mesmo tempo ela estabelece os traços, digamos, “moreirianos” de compor, cantar e tocar, que o identificam e o singularizam. Ocorre que esses itinerários não são ascendentes e permanentemente criativos, como geralmente nos fazem crer as biografias laudatórias. O artista invariavelmente é um sujeito muito sensível, em que as delicadezas e a criatividade convivem com as angústias e muitas dúvidas. Neste frágil equilíbrio pessoal e profissional, o artista passa por aquilo que os críticos identificam genericamente como “fases” (“boas”, “ruins”, “desaparecidos” etc.). Moraes Moreira teve as suas, mas sempre as enfrentou com muita estabilidade e inventividade.

Há uma identidade perceptível no curso da obra de Moraes Moreira?
Como salientei anteriormente, claro que há uma identidade “moreiriana”, que muitas vezes se confunde com a dos Novos Baianos e nos anos 1980 com o Trio Elétrico. Mas ele transportou para esses lugares sua voz anasalada, o toque de seu violão muito singular, o ritmo incessante associado a uma delicadeza sonora evidente e permanente. E, no meio desse turbilhão afetuoso, brota a inquietude com as fusões, experiências e inventividade. Ao identificarmos traços e práticas tão marcantes, como os “moreirianos”, se percebe a grandeza da obra e influência do artista.

O que se poderia destacar das contribuições de Moraes Moreira em relação ao carnaval e, especialmente, à história dos trios elétricos?
Creio que foi enorme. Ele deu vida nova ao carnaval de Salvador ao se associar ao Trio de Dodô e Osmar, trazendo exatamente novas fusões, inventividade e delicadeza. Depois de sua participação, o carnaval baiano ganhou nova expressão. Com o tempo, as novas dimensões, que estabeleceram novas práticas e outros interesses no carnaval, deixaram Moraes muito descontente, levando-o a se afastar.

É possível identificar matrizes e referências (de gêneros, de artistas específicos, de “escolas musicais”) mais significativas/predominantes na obra de Moraes Moreira? Como ele as combinava?
Esse talvez seja um dos traços mais marcantes de sua obra: ele não seguia uma, digamos, “escola” ou “tradição”. Certamente há o Moraes roqueiro, como são evidentes os sinais do violão e a voz bossanovistas; a influência do samba, do choro e do frevo são cristalinos e perfeitamente audíveis em sua obra; assim como seu interesse pela música de carnaval e outros gêneros da cultura musical oral são tangíveis. Acontece que em nenhum desses casos é possível qualificá-lo rigorosamente como “sambista”, “chorão”, “roqueiro” etc. Sua prática era das fusões, combinações e inventividade.

Um procedimento musical muito comum na história da música brasileira foi o recurso aos elementos da tradição oral/folclore. Isso também está presente no Moraes Moreira? Como
Creio que parte da resposta já foi indicada na pergunta logo anterior. Ele usava claramente esses elementos que faziam parte de sua formação e interesses. Mas os manuseava de maneira inteligente e criativa, combinando-os de diversos modos. Aliás, é preciso que se diga que isso não é uma novidade, já que se trata de uma prática cultural que faz parte da dinâmica da música popular no Brasil. A novidade está na forma totalmente peculiar e original em que Moraes Moreira faz uso e combinações, e que fazem dele um artista maior.

 

Braudel e a longa duração – mensagem de Miguel Palmeira aos estudantes de Metodologia

Caras e caros, [1]

volto a uma discussão que tivemos em nossa segunda aula (e a única de conteúdo) para comentar um artigo clássico de Fernand Braudel (1902-1985), “História e ciências sociais: a longa duração”, originalmente publicado na revista Annales: Économies, Sociétés, Civilisations em 1958 e editado em português em 1965, com tradução de Ana Maria Camargo para a Revista de História (ver http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/123422).

Ao discutirmos em sala um dos capítulos de Doze lições sobre a história, vimos que Antoine Prost defende a tese de que, no seio das ciências humanas, a História se distingue por sua preocupação com a dimensão diacrônica dos fenômenos sociais. Ou seja, é como se historiadores e historiadoras, entre seus pares da Antropologia, da Sociologia, da Geografia etc., fossem os mais insistentes em lembrar que a vida em sociedade só se explica por referência ao tempo ou aos tempos em que ela tem lugar.

Conforme foi dito em sala de aula, a tese nada tem de original. Certa ou errada, ela é constitutiva da História como profissão. Na historiografia francesa, essa ideia foi afirmada, por exemplo, como ponto de partida da reflexão desenvolvida por Marc Bloch em Apologia da História (livro póstumo publicado em 1949). Fernand Braudel, que nos anos 1950 dirigia a revista que Marc Bloch fundara com Lucien Febvre em 1929 (os Annales), ocupou-se da relação dos historiadores com o tempo em vários trabalhos. De modo mais sistemático, porém, Braudel debruçou-se sobre a questão justamente no artigo de 1958, objeto do meu comentário desta semana.

Em 1958, Braudel tinha um prestígio intelectual consolidado na disciplina histórica e um poder institucional bastante considerável no campo intelectual francês. O que ele dizia, portanto, tinha um peso relevante nas discussões historiográficas da época. Havia ainda um contexto intelectual específico que tornava aquela sua intervenção relevante. À época, havia se acirrado na França uma disputa pela definição da disciplina hegemônica nas ciências humanas. Os historiadores, embora detentores de um saber muito valorizado no sistema de ensino e na sociedade francesa, vinham sendo questionados como se fossem os representantes de um pensamento retrógrado no estudo das sociedades humanas. Esse pensamento retrógrado se caracterizaria por uma valorização do “sujeito” na história, como se no primeiro plano de interesse dos historiadores estivesse sempre aquilo que os os indivíduos fazem de maneira pensada, consciente. Contra tal perspectiva levantavam-se diferentes variedades de estruturalismo. Tendo como encarnação mais emblemática a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, o estruturalismo voltava seu olhar não para as expressões conscientes da vida social, mas sim para suas estruturas inconscientes. Com seu artigo sobre a “longa duração”, Braudel entrava nessa discussão de maneira engenhosa, contrapondo-se tanto aos historiadores “retrógrados” quanto aos críticos que eles haviam incitado nas disciplinas vizinhas.

A perspectiva estruturalista por vezes derivava para uma redução do papel dos historiadores ao de coletores de fatos, isto é, de fornecedores de materiais que alimentariam as teorias de profissionais (antropólogos, linguistas, filósofos etc.) supostamente mais gabaritados – ainda que um pensador sofisticado como Lévi-Strauss jamais tenha dito algo dessa ordem explicitamente. Contra isso, Braudel apresentava de maneira muito particular a ideia de que a História, ou melhor, a História tal como ele e os historiadores dos Annales entendiam, era uma ciência social de pleno direito. Os cientistas sociais, dizia ele, de modo geral conhecem mal o trabalho dos historiadores. Estes não mais rezariam pela cartilha das filosofias do sujeito, às quais o estruturalismo os associara. A História era, para o autor, a ciência incumbida de explicar um aspecto crucial da existência humana: “essa duração social, esses tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são somente a substância do passado, mas também a matéria da vida social atual”. Residiria aí a importância da disciplina: sua capacidade de desvendar a “dialética da duração”, isto é, a oposição entre o instante fugaz e o tempo longo e lento. Seja para o passado ou para o presente, “uma consciência clara dessa pluralidade do tempo social é indispensável para uma metodologia comum das ciências do homem” (Braudel, 1958, p. 726). Como a ciência das durações inscritas nas estruturas sociais, a História não só não se reduzia a fornecedora de fatos para as teorias alheias, como empregava um modo próprio e percuciente de apreender o social; ela era “a explicação do social em toda sua realidade” (Braudel 1958, p. 738), o que a habilitava a ter certa ascendência sobre outras ciências sociais.

A categoria-chave do texto de Braudel é a de duração. O tempo não escoa de maneira uniforme ao longo da história: ele alterna seus ritmos. Como ciência dos homens no tempo que é, a História deve se dotar dos instrumentos adequados para distinguir esses diferentes ritmos que regulam a vida social. A duração é, portanto, simultaneamente um dado de realidade (os processos podem de fato ser mais lentos ou mais rápidos) e uma ferramenta heurística (nosso olhar deve ser devidamente modulado para explicar a duração específica dos processos de que nos ocupamos).

Braudel avança lembrando que o trabalho do historiador sempre supõe um recorte do tempo. Tal operação o autor recomenda que façamos observando três formas distintas de espessura temporal. A primeira é o “tempo curto”, caro à história tradicional, que faz sobressaírem os indivíduos, o cotidiano, os acontecimentos medíocres e as tomadas rápidas de consciência. Em seguida, Braudel nos fala de um “tempo médio”, ao qual é afeita a história econômico-social. Aqui, os ciclos de dezenas de anos assumem um valor explicativo. Esse recorte do tempo permite distinguir os movimentos da economia (como a subida ou a queda dos preços, por exemplo). Finalmente, o “tempo longo”: a história de longa ou muito longa duração. Esse é o tempo das estruturas, das relações estáveis que se observam na vida social. A história estrutural seria uma história daquilo que tem uma permanência secular – daquilo, portanto, que custa a se modificar. Um bom exemplo dela, aponta o autor, seria seu próprio livro sobre o Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II: a noção de capitalismo mercantil desenvolvida nesse trabalho era o produto de uma mirada de longa duração no domínio econômico, pois identificava os elementos que davam liga à economia da Europa entre os séculos XVI e o XVIII.

Há muito mais do que isso no texto, e por isso eu lhes recomendo que o leiam. Menciono apenas mais um traço seu, que se comunica diretamente com o chamado de Antoine Prost a que historiadores hierarquizem temporalidades desiguais. Vocês encontrarão no artigo declarações conciliatórias de Braudel sobre não se privilegiar uma forma de história sobre a outra. De fato, porém, ele estabelece uma hierarquia causal entre seus tempos. Com a história lenta, ele nos dirá, “a totalidade da história pode se pensar a partir de uma infraestrutura”; “todos os andares (…), todas as milhares de fragmentações do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela. ” (Braudel, 1958, p. 734). Noutras palavras, a estrutura comanda o evento, mas o contrário jamais se verifica. Se isso não anula por completo o interesse dos eventos, estabelece-os como epifenômenos, como consequência de um processo essencial, estruturado, lento. Há uma escala de valores distintos dos tempos, de seus poderes causais e, por conseguinte, dos pesquisadores que se ocupam de um tempo forte e de um tempo fraco (vale dizer, essa é uma formulação que Braudel atenuaria bastante em textos posteriores).

Eis por que Prost termina o capítulo que discutimos evocando Braudel. Suas páginas finais são dedicadas a demonstrar como os historiadores trabalham com o tempo: eles constroem períodos, o que, no estudo histórico, equivale a construir unidades de sentido específicas. Essa é uma operação incontornável, dirá o autor, mas também plena de problemas. E foi Braudel, sugere Prost, quem melhor se houve com tais desafios.

 

Referências bibliográficas

BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales : la longue durée. Annales E.S.C., vol. 13, n. 4, outubro-dezembro 1958, pp. 725 – 753.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Ana Maria Camargo. Revista de História, vol. 30, n. 62, abril-junho de 1965, pp. 261-194.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Rui Nazaré. In: BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1990, pp. 7-39.

______. História e ciências sociais: a longa duração. Trad. Flávia Nascimento. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério Forastieri da (orgs.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, pp. 86-121.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008, cap. 5 (“Os tempos da história”).

 

[1] Comentário enviado a alunas e alunos de Metodologia I durante o período de isolamento social do primeiro semestre de 2020.