Pablo Medina: notas sobre a trajetória do criador da Biblioteca La Nube, em Buenos Aires
Gabriela Pellegrino Soares e Tânia Gomes Mendonça
“Alguns contos contam histórias, tragédias, situações.
Outros não, são inspiradores, poéticos, românticos.
E outros são de muita frescura de linguagem…
que lindo escutar essa frase!”
Pablo Medina
Conhecemos Pablo Medina, fundador da Biblioteca La Nube, em Buenos Aires, como doutorandas na área de História latino-americana, vinculadas ao Programa de História Social da USP. Gabriela Pellegrino Soares, no ano 2000, por certo acaso; Tânia Gomes Mendonça, em 2017, por recomendação de sua orientadora de tese. Fomos ambas muito marcadas pelo encontro com Pablo – por sua acolhida calorosa, sua história de vida, seu trabalho cotidiano com as crianças e com os livros, seu largo conhecimento e compromisso.[1]
Em janeiro de 2020 – pouco antes de o mundo mergulhar no longo inverno da pandemia do Covid – conseguimos uma brecha para ir visitá-lo na Argentina, aproveitando o feriado de aniversário da cidade de São Paulo. Hospedamo-nos por duas noites na casa de Mariano Plotkin, que por coincidência ficava nas proximidades da Biblioteca La Nube. A biblioteca havia mudado de endereço – da calle Venezuela 3031, onde começou, para Jorge Newbery 3537, no bairro de Chacarita.
Vinte anos depois da primeira visita, a biblioteca era animada pela mesma chama. Como escrito na legenda que acompanha as lindas fotografias do site institucional, “en nuestra casa, leer, mirar, escuchar, investigar, participar y compartir, son ocasiones para descubrir mundos”.
Neste texto, queremos recuperar passagens do depoimento concedido por Pablo em três dias de calor sem trégua do verão de 2020. Depoimentos colhidos nas horas lentas, com pequenos intervalos para que o anfitrião atendesse visitantes, preparasse café com facturas e água gelada ou percorresse conosco o acervo. No sábado à tarde, houve também uma sessão de teatro de bonecos, que encheu de adultos e crianças o pátio da biblioteca. Pablo tinha nessa ocasião 82 anos, trabalhava ao lado da filha, Ana Medina, e de outros colaboradores dos projetos que o espaço abriga. Levava consigo a dor da perda do filho, vítima de um assalto violento. O andar de cima do casarão na calle Jorge Newbery guarda homenagens a Pablo Medina Geymonat, idealizador dos projetos da rádio e do cineclube que, entre outros que com ele floresciam, apontavam novos caminhos para La Nube.
Difícil achar o tom para recuperar seu testemunho na forma escrita.[2]
Decidimos não ser exaustivas, nem necessariamente literais, e privilegiar alguns eixos.
Princípios
Pablo nasceu em 1937 na província de Corrientes, região nordeste do país, fazendo fronteira com Uruguai, Brasil e Paraguai. Seus pais eram bilíngues, falantes do espanhol e do guarani. Seus anos de escola coincidiram com os anos de peronismo.
“Vou ligando coisas. Com o peronismo, se abriu um mundo. Pela primeira vez tive um livro. No Natal Perón enviava às casas uma cidra, uma bola se fosse menino, um livro… A Fundação Eva Perón foi criada em 1948. Ela consolidou a prática de enviar livros. (…)[3]
Eu tinha uma tia que era maestra e minha mãe contava histórias em guarani. Eu me formei nesse meio, tinha brinquedos e brincava no pátio de minha casa. Minha vocação foi a leitura desde sempre.”
Para Pablo, “o peronismo foi uma ruptura. Pela primeira vez houve um projeto político para a infância, como um projeto de futuro.” Ele esclarece que dois pensamentos referentes a este tema foram muito significativos na Argentina de Perón: “Los únicos privilegiados son los niños” e “los pueblos que olvidan a sus niños renuncian a su porvenir”.[4]
Aos 14 anos, Pablo conta que abriu em Corrientes, na casa grande em que vivia com a família, uma biblioteca para as crianças. Chamou-a de Club el Tordo. A vocação bibliotecária se aprofundou nos anos seguintes, quando frequentou a Escola Normal.
Havia uma questão política ligada à Escola do Paraná (Província de Entre Rìos). Também à de Catamarca e à de minha província. Tive essa possibilidade, de passar por um plano pedagógico em que pude me aproximar da biblioteca. De mais de cem alunos, dois escolheram a biblioteca. Eu tinha cerca de 16 anos.
Pablo começou a trabalhar como professor em 1961, na escola modelo fundada quase três décadas antes em Buenos Aires pelo milionário filantropo Félix Fernando Bernasconi. Em 1959, uma desilusão amorosa o fez pedir à secretaria de Educação transferência para algum lugar distante, em que “pudesse ser útil”. Foi enviado à província do Chaco, a Noroeste de Corrientes, para lecionar em uma escola nas proximidades de uma toldería indígena [5] – a toldería do último cacique dos índios toba, o cacique Catán. “Eu assim meio castigado, meio dolorido… descobri o mundo da narração, dos jogos. Pois pensava, o que vou fazer aqui? Porque não havia forma de ensinar as crianças, que não falavam (…)”.
Professor da primeira e segunda séries por dois anos, Pablo conta que um dia lhe apresentaram o cacique Catán. O cacique lhe disse: “vim vê-lo, maestro, porque me disseram que você está tendo problemas com as crianças, com los paysanos”. “Não se dizia índios”, esclarece Pablo, “mas paysanitos”. O cacique então explicou que faria uma reunião com os membros mais velhos da tribo. Dez dias depois, veio buscar o professor um veículo próprio para andar em picadas, “em pleno monte, plena selva”. Cerca de 8 kms adiante, alcançaram a toldería, onde os idosos os esperavam sentados sobre troncos de madeira. Uma das anciãs se dirigiu a Pablo: “sabe, maestro, o que você tem que fazer é lhes contar contos com os animais desta zona, com as plantas, com o calor, com a falta d´água, com o vento… e jogue também, brinque muito, o mundo das crianças é brincar…”.
Para Pablo, tudo isso era “uma coisa de outro mundo”. Conta que começou a fazer passeios com os alunos, em caminhadas pelo campo, para prepararem um museu da natureza: “não pegávamos nada que estivesse vivo, não fizemos o herbário clássico com folhas, mas com plumas de animais…”. Certa vez uma menina, a única aluna de 3ª. série, se cortou com um espinho e começou a sangrar. Sangrava muito, Pablo não tinha material para fazer um curativo. Aflito, viu aproximar-se Ángel Capanci, um aluno de origem toba “que nunca havia se comunicado”. Ángel pediu ao professor que esperasse, subiu a colina e voltou com dois gravetos e uma teia de aranha. Colocou a teia de aranha sobre a ferida e estancou o sangramento.
O acontecimento provocou no maestro uma mudança de percepção sobre o ambiente em que estava inserido e sobre o papel do educador. Pablo encantou-se com as propriedades da aranha, que descreveu em detalhes em seu depoimento. Reconhecemos, nesse episódio, chaves da representação que Pablo nutre do seu ofício, e que sintetizou em outra passagem de nossa entrevista: o exercício do magistério é “ensinar e aprender. Nunca é uma aprendizagem fechada”.
Ao retornar do passeio naquele dia, Pablo ainda se preocupava com a reação do pai da menina, o “postero” do armazém onde o professor fazia suas refeições. Apressou-se em contar a ele sobre o incidente, mas o comerciante o tranquilizou – aqui isso é muito comum, no pasa nada…
Os jogos, o lúdico, o simbólico, a leitura… essas dimensões se tornaram centrais nas práticas educacionais de Pablo. O maestro explica: na Argentina, “ao pré-escolar e à escola secundária iam poucas crianças. A escola primária era obrigatória. Eu tinha que dar a melhor formação. Ensinar que o mundo vale a pena… fortalecer a confiança nas crianças”. Assim, contava contos, jogava jogos de integração. “A alguns consegui ajudar para que construíssem uma relação melhor com seu mundo”.
No ano de 1960, Pablo Medina quis deixar o Chaco para fazer uma especialização em professorado. “Deram-me uma bolsa para a especialização em professorado de Educação Física de San Fernando, na província de Buenos Aires.
Dizendo-se sempre inquieto, Pablo buscava naquele momento uma formação acadêmica. Explica que tentou fazer Ciências da Educação, mas achou a formação muito teórica. Então se especializou em Recreação, Tempo Livre e Educação Física, que era algo pragmático. Sonhava em ter uma formação que lhe permitisse entender melhor a infância e a criança. “Mas era preciso também colocar isso em prática. Por isso fiz acampamento, recreação… percorri toda a Argentina, cheguei à Terra do Fogo, cheguei ao Sul do Chile, ao Noroeste com a Bolívia, à fronteira com Paraguai e Brasil”.
Nesse período, passava os finais de semana em Buenos Aires. “E o que descobri em Buenos Aires? As livrarias, na calle Corrientes… e passava o tempo buscando livros. Não tinha muito dinheiro, mas desejava comprar livros e ler muito. E as pessoas me diziam – você não é para ser da Educação Física, você é um intelectual, é para a Filosofia. Ocorre que essa era uma bolsa muito boa, me pagavam a estadia, o alojamento, os estudos, tudo. Era uma bolsa muito interessante… A viagem para voltar à minha casa, em Corrientes, a mil quilômetros da cidade de Buenos Aires. Lá tomei contato com toda a literatura infantil”.
O gosto pela leitura projeta-se como um eixo da narrativa sobre sua vida, uma identidade:
Eu construí uma relação com o livro. […] Eu sou um docente que li sempre. Então tudo isto que você vê, eu armei, é a minha biblioteca pessoal. Na realidade eu sonhava em ter uma formação que me desse a possibilidade de compreender melhor a infância, a vida e a criança. E eu descobri que o livro me ajudava e precisava colocar isso em prática, por isso fiz acampamento, recreação… cheguei até a Terra do Fogo. Percorri toda a Argentina. [chegou ao Chile, à Bolívia, ao Brasil, ao Paraguai]. (…) Pois era preciso meter-se nas diferentes dimensões do ensino.
A fala de Pablo sobre o ofício do professor está atravessada por suas leituras de Paulo Freire. “Eu conheci (Paulo) Freire. Eu o conheci em Montevidéu, depois ele viveu um tempo aqui e eu assistia todos os seus seminários”. Junto a um cunhado de Pablo, Herman Oberdieck (brasileiro, teólogo e sociólogo que vive em Londrina, no Brasil), fez a primeira tradução de Educação para a liberdade para publicação na Argentina. “Fui buscando uma identidade própria. Freire me ajudava a olhar de outra maneira. Eu tinha também uma leitura de Cecile Freinet. Freire toma muito de Freinet e muito de Gramsci”. Na sua busca por identidade, a Biblioteca foi “uma resposta para minha pergunta. Queria ser um maestro. Mas era muito pragmático”.
La Nube: a criação de um espaço de leitura e de pesquisa
Pablo Medina é o fundador da biblioteca La Nube, que contém um vasto acervo de materiais acerca da cultura da infância – um espaço visitado por pesquisadores de todo o mundo, como nós, do Brasil. Por isso, perguntamos: como surgiu La Nube?
Pablo ressalta que, primeiro, ela foi uma livraria, em 1975. Ele nos relata que ficou sem trabalho durante o governo militar. Juan Domingo Perón morreu e assumiu a sua esposa – “um desastre”, ele nos diz, pois assume o poder, juntamente, um setor de direita do peronismo, “e fazem um desastre, e aí aparecem os militares”.
Pablo colaborava com o periódico “El Diario de los Chicos”[6], do Ministério da Cultura e Educação, durante o governo de Héctor José Cámpora (1973), fazendo as notas para esse jornal. Era o único docente incorporado. “E ficamos sem trabalho em 1975 e eu já vendia livros”. E, então, Pablo se perguntou, “bem, por que não abro uma livraria? Eu não tinha um peso – o que tinha eram livros”. Assim, ele e alguns companheiros fundaram a livraria no centro de Buenos Aires: “foi a primeira livraria para crianças estável, que se chamou La Nube”. No entanto, naqueles anos difíceis, seus companheiros partiram da Argentina por problemas devido à sua militância política, e Pablo ficou com La Nube. “Não podia me mover dois metros, não tinha um centavo”, ele relembra. E assim, permaneceu instalado neste mesmo endereço até 1980, quando se mudou para um “casarão velho”, que alugou compartilhando com dois psicanalistas. Eles pagavam a metade e Pablo pagava a outra metade.
Em 1979-80, o convidam para ir ao México, porque se realizava o “Primeiro Congresso de Literatura Infantil em Língua Espanhola”, na Cidade do México. E, na capital mexicana, permaneceu, então, por alguns meses, porque seu cunhado vivia aí, exilado. Neste momento, Pablo pensa na ideia de ficar e viver no México. Na estadia, faz um contato “muito lindo” com muitos cubanos e “chicanos”, mas acaba voltando para Buenos Aires.
No entanto, permanece trocando correspondência com esses companheiros e, assim, tem a ideia de criar uma Biblioteca e um Centro de Documentação. “Eu comprava três livros, vendia dois e ficava com um, e isto é uma perda. Este é o negócio que fiz em toda a minha vida”. Pablo compra pela distribuidora, ganhando um desconto. “Mas eu fui pensando na coleção”. Um dos seus temas é a leitura. “Uma pessoa é o que lê”. “É um alimento constante e permanente. Uma pergunta traz outra pergunta. Quando acredita que uma resposta está terminada, te aparece outra pergunta. Então o livro sempre é uma pergunta”.
O tema principal para Pablo é a “infância”. Todos acreditavam que o tema era a literatura infantil, mas Pablo ressalta que, na verdade, é a “infância”. “A criança politicamente falando, como funciona dentro da política, o que fazemos com uma criança, porque enquanto tem de 0 a 12-13 anos, não produz nada… nem sequer quando está no Secundário… A criança produz conflitos, dificuldades”. Pablo interessa-se em investigar como uma sociedade lida com a infância, a adolescência e a juventude.
Em 1982-83, criou o CEDIMECO – Centro de Documentación de Medios de Comunicación –, que tinha esse nome porque não se podia fazer nada que complicasse a situação, uma vez que o governo militar estava vigiando todos os tipos de organização, “controlava tudo”. A polícia chegou a levar alguns livros seus para investigar. “Os livros eram roubados, pois não devolviam”. Nesses anos de repressão militar, relembra Pablo, um grupo desses entrava em seu estabelecimento e alguma coisa levavam consigo, sempre. Além disso, ainda revisavam todos os papéis que podiam: a autorização para se manter aberto ao público e, se fosse uma associação civil, era necessário possuir os papéis em dia e ter pagado todas as obrigações que se assumia – “era um desastre”.
CEDIMECO foi um projeto criado com outros docentes. Pablo lhes ajudava com a formação. “A biblioteca era uma necessidade para as minhas perguntas”, afirma Pablo, “foi uma biblioteca criada para que eu tivesse respostas, sobre o que eu estava fazendo com a minha vida”.
A ditadura militar argentina e os livros infantis
Após algum tempo de nossa conversa, o tema da ditadura militar argentina retorna e, com isso, perguntamos: como foi a censura durante esse período para a literatura infantil?
Pablo, então, nos relata que a literatura para crianças sofreu um golpe drástico. Havia uma longa lista de censuras de livros, tão grande, que Pablo e outros colaboradores puderam fazer, em 2019, uma exposição itinerante de livros infantis censurados pelo governo militar. Pablo fala a respeito da obra La línea, de Beatriz Doumerc e Ayax Barnes, ressaltando que foi o primeiro livro proibido. “Que narra com uma linha o que um homem é capaz de fazer… e vai se desenvolvendo toda uma história, com a linha”. Pablo afirma que a censura era muito atenta, o que levou à proibição de muitos livros. E alguns deles eram censurados sem nenhum tipo de fundamento.
Pablo nos conta ainda acerca de um livro censurado, chamado Un elefante ocupa mucho espacio, de Elsa Bornemann:
É a história de um elefante que trabalhava num circo. Um dia, o elefante disse: “me batem muito, estou cansado, não gosto do tratamento que me dão. Portanto, vou fazer uma greve”. Faz uma parada de elefantes e, então, convoca todos os animais: “façamos uma parada, e não fazemos apresentações de circo”. Então, esse conto foi censurado porque atacava o capitalismo, atacava o patrão.
Pablo comenta ainda a respeito de outro livro censurado, La torre de cubos, de Laura Devetach. Foi proibido porque possuía um conto cujo assunto era uma criança que tinha uma árvore que produzia cadernos:
Então a criança tinha essa árvore mágica que dava cadernos e o menino dava esses cadernos para outras crianças que queriam desenhar e queriam escrever, e que não tinham forma de comprar cadernos. Um dia veio um senhor que tinha dinheiro e disse: “eu quero comprar a árvore de cadernos para mim”. E o menino disse: “a árvore não está à venda. Porque é para as crianças que têm necessidade de ter cadernos para fazer atividades criativas”. “Bom, mas vão seguir fazendo”. “Sim, mas o senhor vai querer vender”. O capitalismo novamente. O dono do poder. Esse livro foi proibido também.
E, assim, existiam outros livros que foram sendo tirados de circulação porque havia muito medo. “Prendiam as pessoas. Matavam”. Pablo revela que seu primo foi o primeiro “imolado” em Posadas, Misiones. Era um jovem advogado. Em 1976, 1977, estava defendendo presos políticos e o mataram. “Isso era cotidiano”, diz Pablo, “Não, fulano está desaparecido”. “Isso era muito habitual em Buenos Aires. Medo. Construíram uma pedagogia do medo. Terror. E a literatura para crianças, teatro, os espetáculos, tudo foi censurado. E por medo muita gente não fazia coisas comprometidas”. A literatura foi muito “castigada”. Pablo, então, completa: “eu diria que houve muita censura porque em geral toda essa literatura apelava um pouco para a liberdade, a democracia, a comunidade, a associação, a cooperação, a solidariedade. Tudo isso estava censurado. A censura foi muito dura”.
“A leitura é política”
Em meio ao nosso diálogo, Pablo comenta que a forma da conversação é sempre narrativa – “tenho que contar-lhe algo”. Assim, perguntamos: as narrativas orais têm relação depois com o ato de ler? Pablo responde que não, que são duas coisas diferentes. “O ato de ler é uma atitude cultural”. É preciso praticá-la. O homem do campo é observador, e a primeira manifestação da leitura é a observação. “Observo, vejo, comparo e quero respostas, e a resposta é a leitura”. No fim das contas, conclui Pablo, sempre se chega à conclusão de que a leitura é política, pois pressupõe ter um elemento para ser compartilhado – “eu estou falando com você, você está me perguntando, e aí há um ato político, de compartilhar, de convivência, de intercâmbio”, o sentido da política. Pablo reflete:
parece-me que isto é descoberto por Freire [Paulo Freire], que nós também o tínhamos por certo a partir do sistema… aqui todos os grêmios tinham que ter seu sindicato, então se obrigava que todos os trabalhadores tivessem que passar por uma formação. Aqui todos os sistemas de férias estão nos grêmios, em toda a costa existem suas colônias de férias, os grêmios, os distintos grêmios. Isto se deve ao peronismo de 1946 a 1955.
Pablo conheceu a obra de Monteiro Lobato por intermédio de sua tia. Considera Lobato um tradutor da realidade, e a partir da infância. A seu ver, Lobato escreveu a obra mais significativa da literatura infantil não só brasileira, mas continental. Mas não está falando do estilo e sim, do conteúdo, da construção histórica e do olhar que tem sobre a infância. “Isso é muito valioso”.
Relembra de sua formação, sendo que o que mais lhe interessava em seus estudos de magistério era o “concreto”. Pablo desejava trabalhar como um bom professor. O ensino primário é obrigatório, ele pensa, então aí está a chave. Por isso Pablo pensava que tinha que oferecer a melhor formação, que tinha que construir uma relação para que esta criança abrisse a cabeça, visse o mundo de uma maneira diferente. E “que o mundo vale a pena viver e que é necessário ajudar a construí-lo”.
Para Pablo, é necessário revisar constantemente o processo de educação, descobrir funcionalmente o mundo da criança… como é essa criança que chega. “Eu era um professor que sempre aceitava ir à casa das crianças, conhecer os pais, conhecer os avós, comer com eles…”. Levava ao cinema, ao teatro. “Hoje os meus melhores amigos foram meus alunos. Eu sigo me relacionando com meus ex-alunos”.
“O mundo está aberto para compreendê-lo e conhecê-lo. Não para destruí-lo. Para compreendê-lo e para melhorá-lo. Para tratar de construir uma melhor relação com o mundo, com a natureza”. Pablo relembra que a sua Província é onde está a maior reserva de água doce da América do Sul. A sua Província se chama Corrientes. É parte do Aqüífero Guarani. Para Pablo, é urgente fazer uma política de cuidado, desenvolvimento e manutenção não só dos rios, mas da irrigação das regiões de produção agrária. “Tudo isto não se pode perder”, ele diz. “E agora a luta é pela água”. A população que não tem água potável no mundo é enorme. Falta uma política de debate sobre os rios e as águas.
“A criança é parte da política”
“Para mim, o exercício do magistério – do ensinar – é o ensinar e o aprender. Nunca é uma aprendizagem fechada, é uma aprendizagem aberta. […] Eu conheci Freire [Paulo Freire]”. Durante o tempo em Paulo Freire passou na Argentina, Pablo frequentou os seus seminários. Ele ressalta que Freire dizia: “quando eu tomo a palavra pão, a partir da palavra pão eu posso construir toda uma posição política”.
“O que ocorre é que eu fui descobrindo que eu era um maestro político, um maestro militante. E que eu tinha a obrigação de transmitir-lhes a força e a energia da política. O que quer dizer ter força e energia – ter palavra, ter voz. É como dizia Freire. Atrás do pão está a farinha. Quem produz a farinha, como se consegue a farinha? No meio disso há uma cadeia que faz com que chegue a mim, não chegue ao outro. É o capitalismo. (…) É possível construir todo um repertório a partir das palavras. Há toda uma cadeia política. Eu quando percebi o que estava fazendo, havia uma dimensão política, e era certo. Então me especializei.”
Pablo enfatiza que a pedagogia precisa ser modificada. Não se conhece a criança. Assim, ele está mais de acordo com Piaget, “um militante que fazia prática”. Como aplicar tudo que temos? É necessário dar apoio ao docente com especializações periódicas, com base em sua experiência com as crianças. É preciso ensinar com os elementos que tem. Escutar as pessoas e daí construir. É como dizia Paulo Freire, construir o próprio repertório. O próprio recurso se cria por meio da palavra. “Se digo a palavra Pão, Pão-fome. Fome-trabalho. Trabalho-investimento. Quem investe? O Estado. E quem quer colocar dinheiro, apenas, sem investir para trabalhar? O financista. Então há toda uma cadeia política”. Assim, Pablo se deu conta de que o que estava fazendo tinha total relação com a política. E então passou a ler Literatura. Para Pablo, é necessário exercitar-se na linguagem e também na imaginação. A convivência também precisa de exercitação. E isso é político. O cotidiano da criança é político. E como é a política para a criança? É a literatura infantil, são os jogos. “Aí está a chave”.
Em outro momento da conversa, ele acrescenta: “a criança é parte da política, da vida social política de uma instituição como a família. Família é uma instituição política”. Pablo comenta acerca do assassinato de um adolescente por um grupo de jovens, e reafirma a importância de se estudar os produtos culturais para que se compreenda o ódio, o preconceito, a intolerância.
Pablo diz auxiliar as crianças para que possam responder as suas próprias perguntas, construindo uma sociedade mais próxima da ruptura com os esquemas repressivos e violentos, buscando o entendimento de uma maneira mais amável, mais cordial. Não apenas mais integrada, mas mais colaborativa, mais associativa. E esta é uma construção muito longa, muito lenta, que começa nos lares. Por isso é necessário conversar sobre o sistema da organização da família. “Esta coisa de encontrar formas temáticas de conectar-se com a criança ajuda a entender”.
Pablo comenta sobre uma peça de teatro de bonecos para o público infantil, Pequeño Dragón, A volar!, na qual uma personagem imaginária, o Dragão, tem vontade de fazer xixi. Pablo enfatiza a identificação das crianças com o Dragãozinho, que riem quando este manifesta a sua vontade. “Como produzir a risada de uma criança de dois, três anos? Como aparece o sentido do humor?” As crianças riem e pensam “eu também faço xixi…”. Então a obra apresenta temas que têm relação com as crianças desta faixa etária.
Ao final da nossa conversa daquela tarde, pudemos assistir à peça comentada por Pablo, que estava em cartaz na Biblioteca La Nube. De fato, crianças muito pequenas se identificavam com as angústias do dragãozinho, que precisava aprender a voar, mas tinha muito medo e, por isso, sempre criava obstáculos para a aprendizagem. As crianças riam e dialogavam com a personagem. Na lateral, Pablo estava sentado em sua cadeira, observando com olhar atento o pátio repleto da biblioteca, iluminado pelo sol de fim de tarde de verão. La Nube estava, realmente, conectada com o seu público mirim.
***
Voltamos da curta estadia em Buenos Aires preenchidas pelo convívio com Pablo Medina. Nos meses que se seguiram, durante a escrita deste artigo, Pablo nos conta que, desde muito jovem, aprendeu uma frase que marcou toda a sua vida e orientou o seu caminho: “Ayerecó cuaja catú chamigo” (em guarani de Corrientes) – “Aprender a ser uno mismo, mi amigo”. “Era habitual escutar esta frase como expressão cotidiana em minha província”, ele nos escreve. E é com esta frase tão plena de significados que Pablo deseja concluir este registro de sua trajetória profissional e política.
[1] Agradecemos ao CNPq o apoio dado no percurso de pesquisa que nos trouxe a esta entrevista.
[2] Sobre as escolhas metodológicas que a História Oral envolve e as reflexões teóricas acerca de Memória e Narrativa, indicamos a leitura da obra MEIHY, José Carlos Sebe Bom. HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2007. A ideia de “recriação” do texto oral recolhido, transposto a uma forma escrita com vistas à escrita da História, serviu-nos como referência.
[3] Pablo explica que o Governo Nacional enviava um cartão por meio do correio oficial com o nome da família e esta deveria usá-lo para retirar: um pão doce de Natal, uma cidra e um livro para cada criança. Entre os livros que entregavam, Pablo se lembra de alguns títulos, e possui quase todos: Colección Fantasía, com títulos clássicos; Colección Naturaleza, la verdad científica escrita por especialistas e ilustradas por artistas; a Biblioteca Infantil General Perón (editada em 1947).
[4] “Os únicos privilegiados são as crianças” e “os povos que esquecem suas crianças renunciam ao seu futuro”. (Tradução nossa).
[5] Escuela Nº 170 de Pampa Páez, na região da Toldería del Cacique Catán. Francisco Nolasco, Mendoza (Provincia del Chaco).
[6] Pablo explica que o princípio de “El Diario de los Chicos”, era: “El derecho a estar informado”. Foi criado por Marta Dujovne, Lorenzo Amengual e outros importantes escritores e investigadores da época (1973-1974).